O filme em questão, por meio de sua metáfora ficcional, apresenta-se como uma crítica aguda à corrida armamentista que dominou praticamente toda a segunda metade do século XX, e que colocou o planeta a poucos passos de uma hecatombe nuclear global. Os principais agentes desta corrida foram a extinta União Soviética e os Estados Unidos. Mas o filme não aborda literalmente este momento de tensão bipolar que quase nos levou a destruição completa, ele aborda na verdade um hipotético momento futuro após um holocausto atômico, que a realidade tornara extremamente possível e real. Neste ponto precisamos abrir parênteses: dissemos acima que O planeta dos macacos faz uma crítica à corrida armamentista, no entanto temos plena consciência de que a obra traz, além disso, em seu conjunto uma grande variedade de metáforas criticando diversos aspectos do comportamento humano da época em que foi produzido e por que não de todos os tempos? Mas se vamos abordar neste artigo apenas uma de suas vertentes críticas, aquela dirigida contra a ameaça nuclear que o mundo sofreu, é devido ao caráter extremamente breve deste trabalho.
O nosso recorte tem uma razão, ele foi feito para acompanhar o direcionamento que os próprios produtores do filme estabeleceram quando adaptaram o romance La planète des singes do escritor francês Pierre Boulle para o cinema. A história do livro conta sobre uma equipe de exploradores que sai da Terra e encontra, orbitando a distante estrela Betelgeuse, um estranho planeta onde uma civilização composta de chimpanzés, orangotangos e gorilas dispõe, para pesquisas científicas ou como animais de estimação, de uma raça primitiva de seres humanos. Este enredo na verdade é o mesmo do filme de Franklin J. Schaffner, o que vai diferenciar a versão cinematográfica da literária é o desfecho apresentado. Nas últimas páginas do livro o leitor descobre que naquele planeta o homem outrora fora a raça dominante, época na qual cabiam aos macacos os papéis que no momento da narrativa os humanos desempenhavam, depois desta revelação descobre-se que aquela humanidade perdeu sua posição devido a um lento, porém contínuo, processo de indolência e estagnação que a levou inevitavelmente a ser subjugada pela população símia local. No filme este processo ainda é semelhante, porém sua causa difere, foi desencadeado por uma devastação extrema provocada por sua vez por uma guerra nuclear, somando-se a isso o dado mais alarmante é a descoberta de que aquele estranho planeta é na verdade a Terra, fato revelado quando o personagem Taylor depara-se com as ruínas semi-soterradas da Estátua da Liberdade, uma das cenas de maior impacto de toda a história do cinema. Enfim, é a esta diferença que se deve nosso recorte.
Assim como a cena final, o filme tem muitas outras impactantes, tais como humanos sendo caçados como animais selvagens pelos macacos e aprisionados em jaulas. Mas deixaremos as cenas de lado, mostraremos neste artigo a tensão da Guerra Fria transposta da realidade para a película por meio de algumas das frases de maior impacto do filme. Para isso destacamos onze frases, das quais nove são proferidas pelo personagem Taylor, interpretado pelo famoso ator Charlton Heston, que já havia trabalhado em grandes filmes de Hollywood tais como O senhor da guerra, Os dez mandamentos e Ben-Hur, com este último inclusive, ganhara o Oscar de melhor ator. A posição que Heston ocupava em Hollywood e por extensão na memória dos espectadores de cinema explica sua escolha como protagonista aumentado a empatia com o público ao ouvi-lo proferindo suas falas que expressavam esperança, angústia, dúvida, resignação, otimismo e tristeza. Neste ponto em que ressaltamos a importância da escolha do ator para desempenhar o papel principal do filme levamos em conta que para
Desvelar o processo de construção fílmica implica uma complexa análise de dados que vão desde a produção industrial do filme – em toda aquela série de dados cinematográficos essenciais para subsidiar a compreensão dos conteúdos latentes do filme -, até a compreensão de como a história (isto é, os dados históricos, com todo o seu rol de significações) é construída no interior da narrativa fílmica. (SALIBA, 1993, p. 95).
As outras duas frases, das escolhidas, que não foram proferidas pelo personagem Taylor o são pelo personagem Dr. Zaius, interpretado pelo ator Maurice Evans. Dr. Zaius é um orangotango, o Ministro da Ciência e Defensor da Fé, o antagonista de Taylor, que o ironiza apontando a contradição entre suas ocupações. De nossa parte vamos mostrar a contradição do antagonismo entre Taylor e Dr. Zaius, é que ambos os personagens são duas faces da mesma moeda. Parece-nos que na ficção científica a humanidade não deve ser vista apenas nos personagens humanos, ela deve ser enxergada com seus aspectos bons ou maus nos personagens estranhos e diferentes, no nosso caso Dr. Zaius, representante do dogmatismo, repressor que, exatamente por causa dessas características teme o desconhecido e procura com seus atos proteger-se dele. Taylor, devido à situação em que se vê aprisionado por uma civilização estranha, coloca ao lado de seu sarcasmo uma busca desesperada por uma resposta para sua condição. Como dissemos, duas faces da mesma moeda, o medo e o fascínio pelo desconhecido presente em todos nós diluído e divido entre Taylor e Dr. Zaius. Mas para ilustrar o que foi dito o melhor é fazer o que propomos: usar as falas para confirmar as características dos personagens principais e demonstrar como através delas transparece a preocupação e o medo da catástrofe nuclear que ameaçava a humanidade.
Ainda dentro da nave espacial o personagem Taylor, solitário enquanto os demais tripulantes estão imersos em um sono profundo dentro de câmaras individuais, profere três frases:
Taylor - Você que me ouve agora, é de uma geração diferente, espero que de uma melhor.
Taylor - Sinto-me sozinho.
Taylor - Será que o homem, esta maravilha do universo, este glorioso paradoxo que me mandou às estrelas ainda faz guerra com os irmãos?
Taylor, no momento em que profere as frases citadas acima, está fazendo uma espécie de relatório, não para aqueles que o enviaram na atual missão, pois a temporalidade do filme é dinamizada com o auxílio da Teoria da Relatividade de Einstein, segundo a qual o tempo passa mais lento para quem viaja em velocidades próximas a da luz, no caso Taylor e os demais tripulantes da nave, e transcorre normalmente para quem permanece parado na Terra, no caso aqueles que enviaram Taylor e os outros em sua viajem. Pelas contas do computador a viajem durara até então alguns meses enquanto que pelo tempo da terra ele estaria no espaço já a centenas de anos, de maneira que aqueles homens que o enviaram na missão já haviam desaparecido. Portanto o relatório gravado por Taylor fatalmente seria destinado à outra geração. E é nessa geração que Taylor deposita suas esperanças, pois em sua frase está a pressuposição de que a geração da Terra que ele deixou quando se lançou em sua viajem não era a ideal. Nesse ponto a crítica à sociedade da época em que o filme foi produzido fica evidente e clara, pois na década de sessenta Estados Unidos e União Soviética estavam envolvidos na corrida espacial e a viajem do astronauta Taylor recria exatamente a mesma situação, o que direciona ainda mais crítica para a disputa entre esses dois países que polarizavam a Guerra Fria.
A segunda frase citada é mais introspectiva, Taylor está arrebatado pela imensidão do espaço e a sensação de solidão o oprime. Essa situação deve ser enxergada como uma metáfora onde a imensidade do espaço significa na verdade a imensidão profunda do interior humano onde cada um mergulha em busca de resposta para sua existência, onde cada um percebe que dentro de si se está sempre só. Está atitude introspectiva é sempre buscada nos momentos de crise pessoal e social, foi o que aconteceu durante a Guerra Fria, quando pairava a ameaça nuclear, tanto a existência social quanto pessoal estavam em perigo e diante disso o indivíduo se via impotente. Nessa situação a angústia era muito grande, e como o ser humano nem sempre é capaz de dividir seus medos se sentimentos com seus semelhantes sua angústia é multiplicada na solidão em que ele ao mesmo tempo se vê e se coloca.
Na terceira frase é expressa a ironia da situação do homem, capaz ou mesmo tempo de maravilhas e de misérias. Há nela também um apelo para que se enxergue a humanidade de uma maneira universal, isso fica claro com a escolha da palavra irmãos, que chama a atenção para o fato de que todos fazem parte de uma mesma “família”, o que dá ainda mais força à idéia de igualdade unindo a ela a idéia de fraternidade. Há também o desafio à humanidade, pois o ainda revela a idéia de atraso atribuído à guerra, para que ela melhore, evolua em direção a um estágio superior.
A seqüência seguinte do filme mostra a queda da nave de Taylor em um planeta desconhecido, a cena marca um deslocamento do tom de esperança presente nas frases que analisamos acima para uma atitude de resignação que apesar disso encerra uma responsabilidade, uma necessidade de melhora que nesse sentido busca ainda manter a esperança na humanidade, vejamos:
Taylor - Ok, estamos aqui para ficar.
Taylor - Só há uma realidade, nós estamos aqui e agora, você aceite isso ou é melhor estar morto.
A primeira frase citada foi dita por Taylor enquanto ele e seus companheiros viam sua nave afundar levando consigo a esperança de retorno para o mundo de onde vieram. Essa situação assinala o paradoxo temporal e espacial do filme, pois o estranho planeta em que caíram, embora ainda não saibam, é a Terra em uma época diferente. E quando Taylor deixa claro, diante a impossibilidade de retorno, que deveriam ali ficar, ele traz em suas palavras uma idéia de queda, de rebaixamento do ideal para o real. O ideal que está presente na imaginação de todos nós na forma da esperança dá lugar bruscamente à fria realidade da qual se busca fugir e se defender, mas a qual todos, ao mesmo tempo, devem aceitar resignadamente. Mas se a realidade é para ser aceita não é simplesmente para ser mantida, nesse sentido a frase de Taylor também impõe a necessidade de melhorar o mundo em que fatalmente estamos condicionados a viver. A segunda frase reforça ainda o que foi dito acima, e o faz melhor quando nela é oferecida a opção sinistra da morte em lugar da aceitação da realidade. As duas frases calham bem com a argumentação que propomos, pois esse chamado para a realidade em detrimento do ideal significa, na vida real, que a humanidade deveria enxergar de fato a situação em que estava e, enxergando-a, tomar consciência da emergência de mudar a perigosa situação em que se encontravam.
A próxima frase que escolhemos aponta para a descrença no ser humano, para sua fraqueza e para o absurdo de sua possível existência exclusiva no universo:
Taylor- Eu acredito que em algum lugar do universo haja alguém melhor que o homem, tem que haver.
A frase demonstra agora a total desilusão de Taylor para com o gênero humano, entretanto ele, de certa forma, ainda tem esperança de encontrar algo melhor, mas o homem já está descartado de suas expectativas. Esse posicionamento quase místico de Taylor também aponta para a realidade, exatamente para a realidade de um mundo em crise, onde as possibilidades materiais se esgotam e o homem apela para a busca do desconhecido que seria capaz de salvar e de redimir os erros humanos. Mas esse momento não passa de um arroubo que logo se dissipa, sentimos isso nas próximas palavras destacadas de Taylor:
Taylor - Veja pelo lado bom, se isto é o melhor que eles têm por aqui, em seis meses estaremos governando o planeta.
Isso é dito por Taylor aos seus companheiros quando se deparam com um grupo de humanos primitivos do estranho planeta. A atitude que emerge de seu discurso nesse momento é de pura arrogância, que pode ser comparada a dos europeus frente aos nativos da América ou da África, mas além dessa possibilidade desponta também a ânsia de poder presente em cada ser humano, e por extensão em cada nação, sobretudo naquelas em conflito. Ânsia de poder e de domínio sobre o inimigo que a despeito disso é igual. E é baseado nessa igualdade que a cena seguinte terá maior impacto: de repente os humanos selvagens pressentem perigo no ar, ouvem um grito aterrorizante na selva e se põem a fugir enlouquecidos, Taylor e seus companheiros estupefatos a princípio não sabem que atitude tomar, mas por fim acabam, sem saber por que, seguindo os selvagens, integrando-se naquele rebanho amedrontado. Em seguida se vêem caçados e capturados em meio aos outros por uma estranha espécie evoluída de gorilas. Da ironia dessa seqüência emerge uma crítica aguda à humanidade: ela força a reconhecer que apesar das diferenças todos os seres humanos são iguais, parte de um mesmo rebanho unido pelo destino comum na luta pela sobrevivência. E acentuando ainda mais a crítica há a presença dos gorilas perseguindo os humanos. Repetindo o que já foi dito acima: na ficção científica a humanidade não deve ser enxergada somente nos humanos, ela deve ser apreendida, com seus aspectos bons ou maus nos personagens estranhos e diferentes, neste caso os gorilas caçadores que surgem como metáfora para os que usam de uma maior força que possuem e de tecnologias mais avançadas para dominar ou exterminar outros grupos humanos mais fracos.
Já cativo, Taylor, encerrado em uma jaula como um animal, demonstra, com um acento agudo de humanismo, seu pessimismo e desilusão.
Taylor – Na Terra faz-se muito amor, mas não há amor, esse é o tipo de mundo que nós criamos.
Esta fala, ao expressar o reconhecimento do personagem em relação à falsidade das relações humanas, procura, ao escancarar a situação descrita, reformá-la, reformar o mundo onde na realidade o amor não existe, e que, por isso mesmo necessita muito do amor. No mundo ameaçado pela guerra é um apelo a este sentimento que nega todo mal, identificado com a guerra, presente no ser humano.
As próximas frases que colocaremos nessa discussão fazem parte fazem parte do diálogo final entre Taylor e o orangotango Dr. Zaius. Como já dissemos, de certa maneira, estes dois personagens se completam, então a conversa entre eles emerge como uma indagação interna da alma humana em busca de uma resposta que é ao mesmo tempo pessoal e universal.
Zaius – Se o homem era superior, por que ele não sobreviveu?
Taylor – Isso ainda não responde por que neste planeta o macaco evoluiu do homem. Deve haver uma resposta.
Zaius – Não procure Taylor, você pode não gostar do que vai encontrar.
A primeira frase colocada acima, traduzida para a realidade da Guerra Fria deveria ser algo como: O homem, o ser superior na Terra sobreviverá à ameaça de destruição total criada por ele mesmo? No filme o homem não foi capaz, e a indagação do Dr. Zaius feita a Taylor traduz a angústia da humanidade enquanto pairou a ameaça nuclear. A segunda frase citada acima ilustra a arrogância humana e sua dificuldade de aceitar que não é um ser exclusivo, que ao invés disso simplesmente faz parte da natureza do planeta. Para Taylor soa absurdo que, no estranho planeta, o macaco tenha evoluído do homem sem que haja um motivo especial para isso. A resposta de Dr. Zaius não resolve a questão, Taylor ainda vai buscar a resposta definitiva, mas a expressão em seu rosto é significativa, porém antes que tentemos entendê-la cabe aqui a palavra de Ferro:
A idéia de que um gesto poderia ser uma frase, ou um olhar um longo discurso é completamente insuportável: isso não significa que a imagem, as imagens sonoras, o grito dessa mocinha ou essa multidão amedrontada constituem a matéria de uma outra história que não é a História, uma contra-análise da sociedade? (FERRO, 1992, p. 86)
A expressão no rosto, no olhar de Taylor é de fato o longo discurso de que trata Ferro. Dr. Zaius o advertira para que não procurasse respostas, pois elas possivelmente lhe desagradariam, Taylor sabia que era verdade, é essa certeza, é esse discurso que está presente em seu olhar. Taylor é um homem, conhece o homem e sabe de todas as tendências destrutivas do homem, é um discurso de reconhecimento e medo de se reconhecer e se encontrar que emerge do olhar apreensivo de Taylor. Afinal o que ele encontra na última cena do filme é a confirmação de todas as acusações de Dr. Zaius sobre a beligerância humana, ao ver a Estátua da Liberdade meio soterrada Taylor se dá conta que está na Terra, uma Terra totalmente devastada que não lhe deixa dúvidas sobre o que aconteceu, pois ele sabia qual era a ameaça que pesava sobre ela estava antes de sua viajem. A força dessa cena e do filme reside no fato de que o que ocorrera na ficção ainda estava sob risco de acontecer na vida real, o que dava um tom sinistro a velha frase: a vida imita a arte.
FERRO, Marc. Cinema e História. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1992.
ROSSATTI, Renato. O planeta dos macacos: uma mensagem para a humanidade. Disponível em: http://www.bocadoinferno.com/romepeige/artigos/macacos.html. Acesso em 15/12/2009.
SALIBA, Elias Thomé. Coletânea lições de cinema. São Paulo, 1993.