sábado, 25 de julho de 2009


O Feudalismo em O senhor da guerra




Por feudalismo podemos entender, de forma geral, a organização social, econômica, política, cultural e religiosa da Europa ocidental principalmente entre os séculos XI e XIII. No feudalismo a sociedade era extremamente estratificada, um de seus traços marcantes é a idéia da sociedade tripartida composta por oratores, belatores e laboratores - os que rezam, os que lutam, e os que trabalham, respectivamente. Dentro da camada dos belatores ocorriam as relações feudo-vassálicas, que eram contratos com regras previstas entre um suserano e seu vassalo em torno, principalmente, de terras. O dono da terra, proprietário ou senhor feudal, proveniente da camada belatores, controlava os laboratores, que tinham alguns direitos e muitos deveres para trabalhar e viver nas terras do senhor. Aos oratores cabia a intermediação dos homens, fossem eles senhores ou servos, com o deus cristão que via a todos como iguais e ignorava as divisões terrenas. A economia do período estava centrada nos feudos que eram propriedades auto-suficientes, que somente se relacionavam comercialmente quando havia excedentes de produção, nesses momentos ocorriam trocas, pois a economia monetária recuara muito desde a antiguidade. Nesse período o poder estava extremamente fragmentado fazendo com que aristocracias locais tomassem as prerrogativas do poder do estado, nesse cenário o senhor de terras gozava de poderes quase reais. O rei era distinguido, além de ser o maior proprietário, como primus inter pares, o primeiro entre os iguais. Em relação à cultura as principais características foram: a passagem do paganismo para o cristianismo, a tendência para as crenças supranaturais, a belicosidade e os relacionamentos baseados na contratualidade.


Dentro do tema do feudalismo o filme O senhor da guerra mostra-se fiel ao contexto da Idade Média Central, tamanha é a riqueza de referências às situações que predominavam na época, a começar pelo título. Da palavra senhor, podemos depreender dois significados comprobatórios, ambos eminentemente feudais. O primeiro remete imediatamente a um degrau superior da longa escadaria das relações feudo-vassálicas. Pelo título de senhor era obrigatoriamente tratado, pelo vassalo, aquele que a este concedia um feudo. Chrysagon, o protagonista da história, é tratado como senhor pelos seus, isso ocorre provavelmente porque esses guerreiros que o acompanham deviam ter para com ele laços de vassalagem, veremos mais a frente qual poderia ser a natureza desses laços. Por hora seria interessante destacar que o próprio Chrysagon é vassalo do Duque que, lhe concedeu um feudo, onde se desenrolará as aventuras do filme, portanto o Duque é, por sua vez, o senhor de Chrysagon, isso indica que a complexidade das relações de suserania e vassalagem se desenrolavam tanto para cima como para baixo na convivência intracamadas da faixa bellatores do ideal da sociedade tripartida. Outro significado para senhor pode ser subtraído da relação com a guerra, aponta para o caráter bélico do protagonista, quer demonstrá-lo como um guerreiro maior, experimentado e dominador das artes militares, isso nos leva, finalmente, para a palavra guerra presente no título. A guerra, segundo estudos, era uma atividade sempre presente durante a Idade Média Central. Invasões de povos nórdicos, pilhagens de feudos, seqüestros dos senhores com vistas ao seu resgate, senão freqüentes eram situações comuns do período. Certamente não eram tão destruidoras como as guerras de conquistas da antiguidade, mas demandavam a manutenção constante do aparato militar de cada feudo.


Chrysagon, seu irmão Draco, os guerreiros que o acompanham, assim como o Duque que lhe concedeu o feudo para qual se dirigem são normandos. Os normandos eram escandinavos que no século X instalaram-se na região norte da atual França. A partir do século XI eles já estavam cristianizados e, como bem podemos ver no filme, integrados nas práticas do feudalismo. É como senhor feudal que Chrysagon é enviado pelo Duque para a região costeira da Normandia, onde se localizavam as terras que este lhe concedeu. A região era pantanosa, e os guerreiros de Chrysagon alegaram que este merecia terras melhores. O que emerge dessa situação é que, provavelmente, o Duque não enviou seu grande guerreiro para cuidar de terras ou administrar um feudo, é certo que ele o escolheu, o veterano de vinte anos de batalhas, para defender a região das incursões de pilhagem Frísias que devastavam a costa da Normandia, o controle militar das regiões fronteiriças era primordial. É justamente com uma dessas incursões que Chrysagon se depara chegando ao seu feudo, ao ponto de ter tempo de tomar parte na batalha para repelir os saqueadores frisões.


Desta luta inicial podemos destacar o estilo de combate a cavalo, as armas, as armaduras constituídas com malhas de aço. Além disso, é importante notar que Chrysagon é o único que veio tomar posse de terras, dentre todos é o único senhor feudal, mas os demais guerreiros lutam ao seu lado, a ele obedecem como senhor, mas não são seus servos, certamente são seus vassalos e provavelmente recebem dele, para combater, determinado pagamento, isso nos lembra que, no feudalismo, terras não consistiam na única forma de benefício aos vassalos, havia diversas outras formas, dentre as quais destacaríamos para a situação um tipo de feudo de bolsa, perante o qual o vassalo ficava obrigado a prestar serviços militares ao suserano em troca de um pagamento em dinheiro. Ao fim da batalha uma cena emblemática, diante dos habitantes do feudo, provavelmente remanescentes dos povos celtas, montado a cavalo junto com seus guerreiros, Chrysagon indaga Marc, um dos servos presentes, sobre um machado que ele portava, o jovem responde-lhe que o tomou de um frisão durante a batalha. Imediatamente Chrysagon ordena que Marc lhe entregue a arma. Essa cena ilustra primeiramente a diferença entre servos e senhor, os primeiros aparecem vestidos grosseiramente e mantém uma postura submissa diante do segundo, eles também lutaram contra os frisões, mas suas armas na batalha foram foices e forcados, seus instrumentos de trabalho, afinal servos não têm direito a portar armas, são laboratores. O filme explicita isso no ato em que Chrysagon exige o machado de Marc, o senhor em trajes de batalha e pleno de superioridade montado a cavalo retira das mãos do servo a arma, um instrumento estranho a sua função, salvaguardando assim a ordem na sociedade tripartida. Um exemplo de conflito entre as ordens é uma discussão entre Draco e o padre, este procura demonstrar sua superioridade dizendo que saber ler ao que o guerreiro responde ser a ciência do diabo, esta cena mostra-nos que na época eram os clérigos os detentores do saber, mostra também uma tendência a desvalorizar este saber por parte daqueles que não o possuíam, no caso os bellatores, representados por Draco. Afinal a sociedade tripartida existia, era dividida entre oratores, bellatores e laboratores, mas às vezes o convívio entre esses três grupos se mostrava delicado e problemático. Outro fato do combate, que será importante no desenrolar da história, é a captura de um menino, neste momento os cristão ainda ignoram ser ele o filho do rei frisão que comandou o ataque ao feudo, quem fica com a posse do garoto é Volc, um pajem anão. Ele passa a conduzir a criança junto de si presa por uma coleira, quando os outros dizem para Volc largar o garoto ele rechaça a idéia e responde que enquanto o tiver em seu poder também será um senhor. Tal comportamento por parte de Volc mostra-nos que há nos homens a necessidade de mostrar-se importante de alguma forma, mas isso assim o é em todas as épocas, o caso específico mostra que, durante o feudalismo, era preciso dominar outros homens para que um homem se elevasse, para que fosse enfim um senhor.


Após a batalha apresenta-se a Chrysagon um monge, este elogia o povo local dizendo-lhe que já estavam a se esquecer da religião dos druidas. A presença do monge cristão naquela longínqua região da Normandia ressalta o projeto cristianizador da Igreja sobre a diversidade religiosa dos diversos povos de toda a Europa. Mas ao adentrar na torre que lhe servirá de morada, rústica fortificação, exemplo da arquitetura da época, Chrysagon depara-se com uma cena que demonstra como ali o cristianismo vacilava: nus, mortos sobre uma cama estão o guardião da torre e uma aldeã, esta com uma grinalda de flores não deixa dúvidas, era uma noiva que acabara de se casar, mas não era seu noivo o guardião, este se aproveitara de uma tradição, de um ritual de fertilidade dos aldeões, no qual, na noite de núpcias, a noiva deveria deitar-se com o senhor do lugar e não com seu marido. Numa demonstração de completa indignação Chrysagon condena veementemente o que vê e ordena que seja queimada a cama onde os dois estavam. A situação demonstra que longe sucumbir ao cristianismo, crenças dos povos pagãos eram adotadas por cristãos quando estas lhes eram convenientes. Após se alojarem Chrysagon e seus guerreiros partem para uma caçada, no bosque flagram um servo faminto tentando capturar um javali, o miserável é expulso acusado de roubar, pois o direito da caça, durante o feudalismo, era exclusivo do senhor, outro retrato fiel da obra. Após esta cena ocorre o encontro entre Bronwyn e Chrysagon, a relação entre os dois conduzirá o filme daí para frente. Crescerá entre eles um sentimento que foge aos padrões da época, o amor entre uma jovem pagã e o guerreiro cristão. A princípio o senhor feudal teme atribuindo a atração que sente a poderes mágicos, bruxarias lançadas pela jovem - julgamento fruto da intolerância e preconceito cristão diante das demais religiões. Mas o tempo passa, e a cada encontro o desejo de Chrysagon aumenta ainda mais, o que não passa despercebido de seu irmão Draco, este insiste para que Chrysagon tome Bronwyn para si. Draco sabe que seu irmão sente necessidade do amor de uma mulher, pois em uma discussão que tiveram ouviu-o desabafar dizendo que passara vinte anos vivendo com uma esposa fria - sua espada. Esta mágoa do senhor feudal reforça a informação que temos de que a época do feudalismo era de guerras constantes, que arrastavam consigo a existência dos homens. Essa mesma discussão, assim como outras entre os irmãos revelou também a inveja do irmão mais novo, Draco, em relação ao irmão mais velho, Chrysagon. O primeiro se mostra humilhado diante de todas as honras que o segundo recebia do Duque, mas o mais velho defende-se dizendo que suas honras eram advindas dos anos de batalha e rebate que enquanto lutava o irmão permanecia gozando dos prazeres da corte. Isso exemplifica não só a importância que a sociedade feudal dava ao primogênito, mas também as responsabilidades e ciúmes que tal hábito acarretava. Tudo era tão forte a ponto de destruir a relação fraternal entre os dois, percebemos inclusive que ao incentivar os desejos de Chrysagon para com Bronwyn Draco buscava perdê-lo aos olhos dos seus e do Duque, o que afinal consegue chegando até a receber do suserano o direito das terras que antes fora dado ao irmão, pois lhe relatara o descaminho deste no romance com a jovem pagã.


O desejo de Chrysagon o leva a cometer o mesmo pecado que ele condenara ao chegar ao lugar, acaba também por tomar Bronwyn para si após seu casamento com Marc, fato que reforça a fragilidade do cristianismo diante das paixões humanas e demonstra que ele não dominava totalmente a mentalidade dos homens. O senhor feudal interrompe o casamento dos servos, a cerimônia era pagã, nova prova de que apesar de aceitar, talvez por conveniência, a fé cristã aquele povo preservava sua religião. Reclamando para si o direito da primeira noite Chrysagon leva Bronwyn para o castelo com a promessa de devolvê-la na manhã. Isso não ocorre, surge um amor recíproco e a jovem permanece na torre. Tal ato provoca a união dos servos com os frisões. Os primeiros querem a noiva de volta, os segundos o seu príncipe. A reivindicação dos frisões revela uma prática comum no feudalismo, o seqüestro, a exigência de resgate em troca de pessoas importantes, no caso o jovem príncipe frisão, dessa forma Draco age segundo sua época e também o faz como vingança, pois o rei frisão também seqüestrara seu pai no passado. Um detalhe do conflito que se segue é que o pajem Volc está agora do lado dos servos, decerto cansado dos maus-tratos sofridos entre os guerreiros, o que ressalta a brutalidade e covardia desses homens. A união entre os servos e aqueles que os saqueavam, os frisões, aponta para a tendência, durante o feudalismo, de formação de alianças segundos as necessidades do momento, neste caso para combater um inimigo mais forte. Outro retrato do feudalismo são as técnicas de batalha para o assalto da torre assim como as para sua defesa. A consciência do perigo que os cristãos corriam faz Draco ir buscar a ajuda do Duque, outra mostra das tradições feudais, o senhor deveria sempre dar ajuda e proteção militar a seus vassalos, e é com a ajuda dele que Draco consegue levar os seus à vitória final.


Finalmente como a relação de Chrysagon e Bronwyn fugia aos padrões da época ela foi a ruína de ambos, a jovem foi banida de seu povo, o guerreiro perdeu seu benefício junto ao Duque, este desfecho exemplifica que no feudalismo o comportamento dos homens era regulado por um linha estreita que não deveria ser ultrapassada, pois além dos grandes prejuízos que tal atitude acarretava ao infrator havia um perigo ainda mais grave – o risco de abalar a ordem feudal, cuidadosamente construída por meio da complexidade das relações feudo-vassálicas e pela presença talvez não absoluta, mas marcante religião cristã.



O senhor da guerra/The war lord


Direção: Franklin Schaffner


Elenco: Charlton Heston, Richard Boone, Rosemary Forsyth, Maurice Evans...


Ano: 1965


País: Estados Unidos


Duração: 122 minutos








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