INTRODUÇÃO
O estudo de Prometeu Acorrentado justifica-se nesta pesquisa devido ao meu grande interesse pelo personagem central da peça. O personagem de Ésquilo desperta grande atenção por sua coragem, altruísmo, orgulho, e, sobretudo por ser um exemplo de insubordinação contra poderes e autoridades arbitrárias e tirânicas. A sua atitude impressiona ainda mais pelo fato de ser conhecedor do caráter terrível de seu castigo e, mesmo assim, seguir em frente em seu intento de beneficiar os seres humanos.
Outro fato que move meu interesse por Prometeu é ele ser um exemplo de herói magnânimo, honesto e fiel aos seus princípios, características que lhe impossibilitam curvar-se à vontade dos deuses poderosos. Prometeu, como é apresentado na peça de Ésquilo, é o exemplo do tipo de herói que a arte de nosso tempo não mais produz, e, mesmo sendo compreensível que nossa sociedade, sendo outra, produza, na arte, seus próprios tipos de heróis, é necessário a valorização do personagem esquiliano como referência de uma criação artística produto de uma sociedade com características específicas, e também como exemplo de uma arte que pode funcionar como elemento de transformação do ser humano em sua luta contra as adversidades, prevenindo-o contra a conformação com as mesmas.
A fidelidade de Prometeu aos seus princípios torna-se ainda mais óbvia quando se observa o próprio arranjo cênico da peça, na qual Ésquilo postou seu herói em uma posição de imutabilidade física extrema, imutabilidade física que é ao mesmo tempo confirmação e metáfora de sua atitude de não aceitação dos desígnios de Zeus e seus comandados, pois diante deles Prometeu permanece sempre constante em sua insubordinação. Esta característica de imutabilidade física, que Ésquilo deu a Prometeu, surge como objeto interessante à pesquisa, pois sendo o teatro um gênero que pressupõe ação, Aristóteles mesmo diz em sua Poética: “Ademais, sem ação não poderia haver tragédia;” um pouco antes, também no capítulo VI ele disse ainda: “É a tragédia a representação de uma ação grave, com atores agindo e não narrando” sendo assim como a construção esquiliana do personagem Prometeu se justifica?
É a tentativa de responder esta pergunta que moverá o meu interesse nesta pesquisa, que se centrará principalmente no arranjo cênico da peça. Em função disto investigarei de que formas o arranjo cênico peculiar criado por Ésquilo para sua obra Prometeu Acorrentado contribuiu para a configuração do personagem Prometeu.
CAPÍTULO I – PROMETEU ACORRENTADO E A TRAGÉDIA GREGA
A peça de Ésquilo, Prometeu Acorrentado, objeto deste estudo, é uma das mais conhecidas obras do teatro trágico grego, despertando interesse e discussão em diversas áreas de pesquisa tais como antropologia, sociologia e filologia.
Antes de iniciar o estudo de Prometeu, o personagem principal, é preciso conhecer melhor o gênero tragédia grega desde sua origem, passando pela compreensão da obra trágica de Ésquilo, até chegar a forma como o autor adaptou o mito de Prometeu à sua obra, na tentativa de desvendar as caracterizações elaboradas pelo autor na construção de Prometeu, na peça Prometeu Acorrentado.
Este primeiro capítulo será destinado a estas tarefas que serão muito importantes para um desenvolvimento mais claro e objetivo deste estudo.
Segundo Lesky (1995), as origens da tragédia, que remontam à época arcaica, configuram um dos problemas mais difíceis e discutidos da literatura grega. Sabe-se que naquele período as colônias gregas, tanto a leste como a oeste, viviam um momento de efervescência em diversos domínios. Ao contrário, a metrópole passava por um momento de estabilidade que possibilitou um apuramento, uma evolução da arte dramática em solo ático. Decorrida nesse momento histórico, a evolução está constatada em obras posteriores, o que nos testemunha o progresso e aperfeiçoamento do drama no período arcaico. Contudo, estas manifestações não chegaram até nós em forma de literatura e tampouco em forma de dados e informações sobre as obras dos escritores daquele período, alcançando-nos tão somente por meio de doxografia. Mas acima de tudo temos ainda as obras do século V a. C. que atestam a presença da elaboração no período arcaico.
Em sua História da Literatura Grega, Lesky (1995) coloca-se ao lado de Aristóteles, aceitando a Poética como fonte segura para conhecer a gênese da tragédia, em detrimento de representantes de uma tendência etnológica que rivalizam com as indicações de Aristóteles, considerando-as equivocadas. Os debatedores de Aristóteles tentam derivar a tragédia das danças e ritos mímicos de vegetação dos povos primitivos. Lesky por sua vez rebate esta idéia alegando que o material etnológico, apesar de também ter contribuído para o desenvolvimento do gênero trágico, é um dado comum a muitos outros povos que não desenvolveram a tragédia, vindo esta a florescer exatamente e exclusivamente em solo grego. Lesky (1995) argumenta ainda que é preciso considerar a posição privilegiada de Aristóteles na história, o fato do filósofo ter vivido, e construído sua obra em um período muito próximo ao do florescimento do tema que trata. Lesky (1995) ainda aponta um outro fator que legitima e dá credibilidade ao filósofo grego, o conhecimento de que Aristóteles fez, assim como para sua Política, estudos preliminares muito cuidadosos também, para a Poética.
De acordo com Lesky (1995) é no capítulo IV da Poética de Aristóteles que o filósofo grego dá a solução para a origem da tragédia, que segundo o filósofo surgiu dentro do ditirambo, do embate entre o coro e o corifeu, embate este que evoluiu para o desenvolvimento posterior do elemento dialógico e dramático. O ditirambo era o canto em honra ao deus Dionísio que, passando por processos de transformações em direção a uma forma artística, constituiu um elemento primordial da formação da tragédia. Mas mesmo em Aristóteles a origem da tragédia é um tema permeado de complicações. O autor da Poética, em sua própria obra aponta uma segunda origem para a tragédia grega. De acordo com Lesky (1995) o filósofo afirma que inicialmente a tragédia era formada de pequenos temas carregados de uma linguagem jocosa, que apenas mais tardiamente assumiu uma forma de absoluta dignidade, ao distanciar-se do satyrikon. Para compreender bem este processo é preciso ter em mente que o satyrikon tratado por Aristóteles na Poética não é aquele na forma de drama satírico aperfeiçoado, que se configurou da forma que o conhecemos só após o estabelecimento da tragédia. Durante o curso de seu desenvolvimento, a tragédia sofreu influência do elemento satírico, que também caminhava, absorvendo-o progressivamente, porém sem dar a este posição de destaque, mantendo-o em segundo plano.
Mas quando e de que forma se deu o encontro do ditirambo com o satírico para que ambos fossem considerados elementos originários da tragédia? A resposta a esta pergunta encontramo-la, segundo Lesky (1995) em Heródoto e na Suda, que apontam, segundo a tradição, Aríon como o primeiro a compor um ditirambo, dar-lhe nome e representá-lo em Corinto. Aríon também é apontado como o primeiro a ter composto um coro, a cantar um ditirambo e nomear a parte cantada pelo coro, além de ter introduzido sátiros falando em versos. Lesky pontua ser evidente que Aríon não foi o inventor do canto do culto à Dionísio, mas seu valor está no fato de ter dado ao ditirambo uma forma artística dentro da lírica coral e ter feito com que sátiros representassem estes ditirambos de forma artística. Assim estabelecida a maneira como os dois elementos, ditirambo e satírico, se uniram, formou-se a base segura para a afirmação da Poética sobre a dupla origem da tragédia.
Uma outra questão relacionada à gênese da tragédia é o fato de seu tema ser dissonante de seus elementos originários. Apesar de conter, vários elementos dionisíacos herdados do ditirambo e do satírico, o tema, invariavelmente trágico, suscitou já entre os antigos estudiosos uma frase proverbial: Isto nada tem a ver com Dionísio. A explicação que Lesky (1995) encontrou para esta questão é que, na época dos tiranos, o culto a Dionísio, o deus dos camponeses, foi extremamente incentivado por aqueles governantes. Ao lado disso, os governantes incentivaram homenagens aos heróis por meio da tragédia. Isso levou a lenda heróica a figurar como conteúdo do drama trágico. Os mitos dos heróis, após o período épico e da lírica coral, passaram a figurar na tragédia como base para a problemática ético-religiosa do gênero que, com este novo elemento, aproximou-se mais do povo, pois os mitos dos heróis eram parte de sua história. Entretanto, apesar da aproximação com o tema heróico, a tragédia pôde manter, relativamente ao objeto tratado, o distanciamento necessário a toda grande obra de arte.
Estabelecidas assim, a partir de Lesky (1995), as origens da tragédia, podemos avançar rumo a uma relação da tragédia com a obra que pretendemos estudar. O tema de Ésquilo, em Prometeu Acorrentado, resumido como a história de um herói, que, por desafiar um deus todo poderoso, é castigado, pode ser considerado como eco artístico da situação vivida pelos gregos, especialmente aqueles que eram adeptos do culto de Dionísio. De acordo dom Junito Brandão (1985), nos rituais desse deus ocorria um processo de embriagues de êxtase e entusiasmo a partir do qual o adepto tornava-se o homo dionysiacus, libertando-se neste estado dos interditos de ordem ética, política e social, ultrapassando desta forma o “métron”, que significa a medida de cada um. Nesta situação o homem comum torna-se o ATOR, um outro, além de, ao ultrapassar o métron comete uma démesure, uma hybris, uma violência cometida contra si e os deuses imortais, o que provoca a nemesis, o ciúme divino, o que acarreta posteriormente uma punição. De certa forma esta situação de desobediência à ordem divina era também uma desobediência ao estado. Não temos pretensão aqui de afirmar que o drama criado por Ésquilo em Prometeu Acorrentado seja um instrumento didático de fundo estatal ou religioso, no entanto fica claro que o tema da tragédia em questão correspondia a uma situação social do mundo grego.
Ésquilo, o mais antigo da tríade de trágicos completada por Sófocles e Eurípedes, é considerado o mais ritualístico entre os três famosos tragediógrafos gregos. A propósito disso Junito Brandão salienta que “o teatro esquiliano é muito mais uma teomorfização que uma antropomorfização.” Esta afirmação, se colocada, principalmente, sobre Prometeu Acorrentado, pode servir muito bem para ajudar na compreensão da obra trágica de Ésquilo.
Pensemos em um primeiro momento na questão da mímese, a imitação no drama do Titã parece criar uma situação de elevação do herói, que já sendo um ser divino, cresce ainda mais durante a trama em função de sua coragem, altruísmo e certeza da natureza benéfica de seu ato heróico em favor da humanidade, o que lhe acarreta martírios dolorosos, os quais ele enfrenta sem medo e com orgulho. Dessa forma, Prometeu, um ser de caráter divino diviniza-se ainda mais devido a heroicidade de seu ato e de seu comportamento imutável mesmo diante do pesado e duro castigo. A conduta de Prometeu, se considerarmos que o herói da tragédia seja um exemplo a ser seguido pelo espectador, assim parece, pode ter o mesmo efeito de elevação sobre a platéia, um efeito de identificação com o herói de caráter divino, daí a teomorfização do próprio espectador da obra de Ésquilo. Junito Brandão (1985) pontua também que os personagens esquilianos são mais heróis que homens, vivendo um drama de luta desesperada entre as trevas e a luz. Em Prometeu Acorrentado, esta equação de confronto entre luz e trevas travou-se no próprio herói, que preferiu, compadecido, roubar o fogo dos deuses Olímpicos para através dele legar aos seres humanos a luz divina que lhes animaria o gênio, o espírito e as artes, ao invés de abandoná-los à sorte que Zeus a eles destinara, de permanecerem nas trevas da ignorância.
Junito Brandão (1985), analisando outra peça de Ésquilo, Os Persas, aponta a Moira como filosofia básica do teatro esquiliano. A fatalidade cega castiga o homem, mas este também é responsável por seu destino, pois o atraiu para si quando ultrapassou o métron. É o que ocorreu com Xerxes em Os Persas, o rei Persa ultrapassou sua medida ao ambicionar derrotar o exercito grego, e a fatalidade que o esmagou foi a derrota completa de seu exército. O mesmo processo ocorre também em Prometeu Acorrentado, onde o herói Prometeu comete uma hybris ao roubar o fogo divino, ultrapassando seu métron mesmo já sabendo o castigo que Zeus iria lhe impor. Dessa forma, Prometeu também é esmagado pela moira, tendo também responsabilidade quanto ao seu destino, pois sendo o herói da peça conhecedor do futuro, já sabia o que lhe acarretaria a ultrapassagem de sua medida. Outra afirmação de Junito Brandão é a de que o teatro esquiliano é um drama sem esperanças e sem promessas, Junito afirma também que para Ésquilo do sofrimento advém sabedoria, pensando estas afirmações em relação à Prometeu Acorrentado podemos constatar isso, principalmente através do drama da personagem Io, a qual está condenada a sofrer um martírio duradouro, e é através do sofrimento de sua perseguição que Io faz compreender a tirania divina.
Outro estudioso, Vernant (1991), no segundo volume de seu livro, Mito e Tragédia na Grécia Antiga, aponta que no teatro esquiliano a intervenção entre o mundo divino e o mundo humano é constante. Os dois universos refletem-se constantemente em uma corrente na qual conflitos humanos correspondem aos conflitos divinos, onde a tragédia humana é também uma tragédia divina. No caso de Prometeu Acorrentado a analogia é simples se pensarmos em relações de poder político, onde o herói pode ser interpretado como representante do povo em seu ato de insubordinação contra o poder tirânico de Zeus. Um outro apontamento de Vernant (1991) em relação ao teatro esquiliano é a representação cênica de onde o drama trágico se desenrola. Segundo o autor, na tragédia deve existir um processo de reconhecimento e de questionamento da cidade por ela mesma, por isso é que a ação cênica é desenvolvida na maioria das vezes diante de um palácio real ou de um templo, mas em uma das exceções a essa regra inclui-se Prometeu Acorrentado, cuja cena desenvolve-se em uma montanha, um lugar ermo, longe da cidade, essa característica singular de Prometeu Acorrentado será objeto de análise, para fundamentar a idéia da imutabilidade física e ideológica, em um dos próximos capítulos deste trabalho.
Um outro tema de Prometeu Acorrentado abordado por Vernant (1991), é a situação do escravo dentro da obra de Ésquilo. O autor destaca que na peça referida o papel do escravo foi elaborado de forma muito enriquecida por Ésquilo, pois o autor colocou o Titã Prometeu, um ser divino, sendo castigado como um escravo por Zeus que nessa visão desempenha um papel de senhor e tirano. Há ainda o contraste entre a escravidão de Prometeu e a servidão voluntária a Zeus que o herói atribui a Hermes, considerando-a ainda mais repugnante que o sofrimento de seu castigo[1].
Em relação ao mito de Prometeu, Jean-Pierre Vernant (2002) atenta para a existência de mitos de dois Prometeus com algumas características distintas. O primeiro, deus das indústrias do fogo, ceramista e metalúrgico, o segundo, o Titã envolvido no tema dos conflitos entre as gerações divinas. Em Prometeu Acorrentado Ésquilo apresenta um herói que é a fusão desses dois, colocando em cena um Prometeu, portador do fogo tomado dos deuses e castigado, vítima da cólera de Zeus. Vernant (2002) mostra, comparando Prometeu com o Zeus presente em Hesíodo, uma imagem negativa do primeiro. A comparação evidencia um Zeus cuja inteligência é regida pela ordem e pela justiça enquanto a inteligência de Prometeu provém de cálculo e astúcia, caracterizando assim seus pensamentos como sendo fraudulentos e sua previdência muitas vezes causadora de enganos levando Prometeu a ser considerado, por vezes, imprudente e irrefletido. Poderíamos fazer essa mesma leitura de Prometeu na peça, contudo se o herói que Ésquilo apresentou talvez tenha sido imprevidente, ou inconseqüente, sua conduta é perdoável se colocarmos em vista seu objetivo de auxiliar os seres humanos, que somente nele encontraram amparo, caso típico em que os fins justificaram os meios. Vernant (1991), aponta ainda uma característica geral de Prometeu que aparece além de em Ésquilo, em Hesíodo e em Platão, a do encarregado de distribuir a cada um a sua parte. Platão mostra Prometeu junto com Epimeteu, seu irmão, encarregado de distribuir aos seres da criação “as qualidades de maneira conveniente”. Em Hesíodo ele é o árbitro da disputa entre os deuses e os homens, investido da tarefa de fixar a ração de cada um. Em Ésquilo, finalmente, Prometeu é o único a lembrar-se da raça humana, opondo-se aos planos de Zeus, quando este reparte os privilégios entre os deuses e demarca os níveis de seu império.
Nota-se que, segundo Vernant (1991), apenas em Ésquilo surge a preocupação de Prometeu com os seres humanos e, além disso, somente na construção do personagem trágico o herói do mito surge como contestador de uma ordem pré-estabelecida, enquanto que em Platão e Hesíodo ele simplesmente cumpre funções que lhe foram destinadas. O que se pôde observar é que, diante das diversidades relacionadas ao mito, Ésquilo optou por reforçar a imagem do herói divino, benfeitor da humanidade, que com seu altruísmo e orgulho frente aos injustos castigos eleva-se ainda mais diante da platéia, trazendo esta junto de si em sua elevação trágica por meio do processo de identificação que marca a arte dramática grega.
Mas além de estudar o mito, as formas e opções das quais se valeu Ésquilo na construção de sua obra, seria interessante também observar o contexto histórico-social no qual todos os elementos abordados, inclusive o autor estavam inseridos. Passemos ao próximo capítulo.
CAPÍTULO II – ÉSQUILO E PROMETEU - POLÍTICA E MITOLOGIA GREGA
De acordo com Vernant (1991), no segundo volume de Mito e Tragédia na Grécia Antiga, Ésquilo foi contemporâneo às Guerras Médicas, tendo inclusive lutado nas batalhas de Maratona e Salamina. Tinha cerca de dezoito anos quando Clístenes operou as grandes reformas que posteriormente introduziram a democracia em Atenas. Foi contemporâneo também das disputas dos democratas, dentre os quais se destacaram Elfiates e Péricles, contra seus opositores.
Sabe-se que Elfiates enfraqueceu o Aerópago[2], tornando a Boulé[3], junto com a assembléia popular o único órgão com função política em Atenas, mas não se sabe como Ésquilo viveu esta importante mudança na pólis, tampouco sabe-se seu posicionamento e como ele votou na assembléia. Duas indicações exteriores à sua obra, apesar de não trazerem luz à questão, são importantes, mesmo apontando cada uma delas posicionamentos diferentes. A primeira diz respeito ao seu corego[4], que em 472 a. C. era Péricles, isso nos leva claramente a fixar para Ésquilo, nesta época, a posição de democrata. Por outro lado o epitáfio do dramaturgo omite toda sua obra literária, fazendo menção apenas a sua participação na batalha de Maratona em detrimento a de Salamina, o que o coloca, ideologicamente, ao lado da república dos hoplitas, opositora da democracia.
Sendo, por enquanto, insolúvel a questão do posicionamento político/ideológico de Ésquilo durante o advento da democracia em Atenas, voltemos então o olhar para o que diz Vernant (1991) sobre a tragédia neste período. Ainda no segundo volume de Mito e Tragédia na Grécia Antiga, o autor citado afirma que a tragédia é uma forma de identificação da cidade democrática. Ao opor o ator ao coro ela representa o mito do príncipe tornado tirano, questionando-o ao mostrar seus erros que finalmente o levam à catástrofe, a síntese da cegueira real. O povo, segundo Vernant (1991), não está presente no palco da tragédia, seu lugar é nos degraus do teatro. O coro, que poderia desempenhar o papel do povo, é em Ésquilo composto por Fúrias em Eumênides, escravas em Sete contra Tebas, Suplicantes e Coéforas, e em Prometeu Acorrentado pelas deusas oceânides. Em Ésquilo o povo é na verdade apenas representado por meio de figurantes mudos.
Essas informações históricas, se confrontadas com Prometeu Acorrentado parecem não ser de grande valia para relacionar de forma exata e segura a obra com a situação política vigente, visto que os personagens de Ésquilo na peça pertençam todos a categoria dos deuses olímpicos. Mas isso não exclui, absolutamente, a possibilidade do autor ter usado em sua obra analogias entre esses deuses e os governantes de sua época, principalmente porque a peça trata do poder tirânico, da injustiça e da insubordinação, elementos presentes nos embates políticos universais.
Dessa forma resta buscar os aspectos culturais presentes entre os gregos para situar a análise da obra o mais próximo possível do universo que lhe é próprio.
No capítulo anterior já foi abordada a questão relativa à duplicidade mitológica de Prometeu. Um dos mitos mostrava-o como deus das indústrias do fogo, o outro como o Titã envolvido nas disputas entre as gerações divinas. Foi mostrado também um aspecto mitológico comum - o de dar a cada um a sua parte - é essa a função de Prometeu em Hesíodo, Platão e Ésquilo. A partir disso percebemos que Ésquilo utilizou-se do macrocosmos mitológico grego para construir sua obra trágica, ora adaptando à sua necessidade artística dois mitos de certa forma distintos embora concernentes a um mesmo personagem, ora utilizando-se do mito de forma consensual à que os gregos já conheciam. As adaptações do mito criaram um microcosmos que é a própria peça Prometeu Acorrentado.
Kitto, outro estudioso da tragédia grega fala sobre as adaptações e apropriações feitas por Ésquilo para a construção de Prometeu Acorrentado. Em sua obra, A Tragédia Grega, (1972) ele diz que o mito em Hesíodo oferecia um deus menor, ardiloso, que simplesmente roubou o fogo para dá-lo aos mortais. Ésquilo por sua vez “transformou-o num deus que tinha dado ao homem tudo que o distinguia da criação bruta e lhe dava possibilidades de se medir com Zeus.” (Kitto 1972, p. 195) Mas adiante, na mesma obra, Kitto afirma, em relação a toda obra do dramaturgo grego, que Ésquilo foi capaz de criar seus próprios mitos para servir-se deles como desejava, fazendo com que eles comunicassem o que ele queria, evitando que suas peças seguissem histórias já existentes. As informações acima, acerca da época e da obra de Ésquilo, não são suficientes para caracterizar seu posicionamento durante as transformações que Atenas sofreu, tampouco são capazes de demonstrar, em suas obras, simpatia ou antipatia pelo advento da democracia, por outro lado elas atestam que Ésquilo foi um autor maior, que, por meio de sua arte, utilizando-se da mitologia, expressão cultural tão própria dos gregos, foi capaz de criar, em uma obra como Prometeu Acorrentado, um enredo universal, que traduz a eterna luta entre oprimidos e opressores, e um herói superior e exemplar, na medida em que toma para si a responsabilidade de proteger os mais fracos diante dos mais fortes ao custo de sua própria destruição.
CAPÍTULO III – PROMETEU – O HERÓI IMUTÁVEL
Prometeu Acorrentado - única peça remanescente de uma trilogia - trata do castigo do Titã Prometeu, herói da peça, que, por ter roubado o fogo dos deuses para dá-lo aos humanos, é condenado a ficar acorrentado a uma montanha, sob as intempéries da natureza, para expiar a culpa que Zeus e os deuses Olímpicos lhe atribuem, e ser coagido a revelar um segredo, de grande valia para Zeus, que apenas ele detém. Mas Prometeu não se julga culpado, antes sente-se injustiçado pelo senhor dos deuses, e é por meio deste conflito entre o Titã e Zeus que se dará a ação dramática da peça. Renata Pallottini, em seu livro Dramaturgia, Construção do Personagem (1989, p. 11) diz que “ação dramática é o movimento interno da peça de teatro, um evoluir constante de acontecimentos, de vontade, de sentimentos e emoções, movimento e evolução que caminham para um fim, um alvo, uma meta”. Mas a ação dramática em Prometeu Acorrentado não corresponde inteiramente à definição de Pallottini, pois na peça em questão a relação entre a evolução de acontecimentos e o movimento são nulos. Esta afirmação, extraída a partir da análise da peça, na qual o herói permanece durante toda a cena, acorrentado, é compartilhada por Kitto (1972, p. 111), segundo ele, Ésquilo dramatiza efetivamente, em Prometeu Acorrentado, as emoções e não os acontecimentos. Temos portanto um conceito de ação dramática que pressupõe, entre outros elementos, evolução de acontecimentos e movimento para a evolução de uma peça, por outro lado temos uma peça onde a evolução de acontecimentos e o movimento são nulos, e é neste ponto de divergência, entre o conceito de evolução dramática e a ausência, em Prometeu Acorrentado, de dois de seus elementos necessários, que surge o problema a ser analisado neste trabalho.
Imutabilidade. Esta é a característica principal de Prometeu na peça, e é por meio da presente análise que mostraremos duas faces dela, a física, a ideológica, e a forma como Ésquilo fortaleceu a segunda a partir da primeira, simultaneamente, na construção do personagem. E a melhor forma para isso, já que se trata de um texto dramático, é proceder a análise, principalmente, a partir dos diálogos, das falas de cada personagem que interage com Prometeu, levando-se muito em conta a opinião de Kitto (1972), quando ele diz que toda a atenção da peça gira à volta de Prometeu, e que tudo acontece em função do herói, Kitto (1972, p. 109) afirma: “Olhamos sempre a partir das personagens menores para o herói”. Este é um dado importante e será a pista que guiará a análise. Outro dado importante é ter a noção clara do que é um personagem dramático, vejamos o que Pallottini(1989, p. 13) diz a respeito:
...o personagem, esse contorno de ser humano feito por um criador, mais ou menos preenchido de detalhes, imitador de uma pessoa, que está destinado a cumprir um papel na peça de teatro, dizendo, fazendo, agindo, mostrando-se por gestos, atitudes, entonações, levando adiante a ação dramática que é a essência da obra teatral.
Juntamente com a análise da interação de Prometeu com os personagens menores estaremos atentos ao personagem do herói, aos detalhes com os quais Ésquilo o proveu, ao seu destino dentro da peça, seus gestos, atitudes e a forma como é conduzida, por meio dele, a ação dramática da peça.
Mas antes dos diálogos dos personagens menores com o herói há o silêncio de Prometeu, segundo Pallottini o silêncio sempre diz algo, e este algo caracteriza o personagem em seu momento dramático na peça. Vejamos: a cena do agrilhoamento estabelece, logo no início, a imutabilidade física de Prometeu, que perdurará durante toda a peça, este recurso de Ésquilo é muito importante e significativo para a caracterização do herói, que, além de permanecer estático fisicamente, permanecerá estático também ideologicamente, defendendo sempre, diante das pressões de Zeus, seu orgulho e dignidade. Começar a peça a partir deste episódio imprimiu uma grande força dramática à obra pois, segundo Pallottini (1989, p. 72), “o que se vê tem muito mais impacto do que simplesmente se ouve, o que é feito no palco, em geral, não se perde; o que é dito sim, muitas vezes.” Em cena o herói é agrilhoado por Hefestos sob as ordens implacáveis de Poder, o diálogo entre os dois últimos é importante, pois acentua a expressividade do silêncio de Prometeu. Kitto, (1972) aponta que Ésquilo se aproveitou otimamente do terceiro ator nesta cena, pois dessa forma, através do terceiro ator foi possível representar a cena do agrilhoamento preservando o “efeito dramático do silêncio desdenhoso de Prometeu”, que tinha o espírito voltado para Zeus e não se rebaixaria ao ponto de conversar com seus carrascos. Kitto (1972) afirma ainda que diante do silêncio de Prometeu seria forçoso que um outro ator falasse, mas um monólogo não teria o mesmo valor dramático de um diálogo neste momento, onde o diálogo calhou bem melhor, possibilitado pela presença do terceiro ator. O autor mostra que Ésquilo poderia, ao invés do terceiro ator ter feito entrar em cena o coro, porém pondera que isso sacrificaria o efeito dramático da solidão extrema do lugar.
O herói em silêncio diante de seus carrascos mostra ao espectador seu orgulho resistência e dignidade, e assim desde a primeira cena demonstra sua obstinação em manter-se senhor de si e de sua grandeza que o impossibilita pedir clemência ou mostrar-se arrependido. O agrilhoamento de Prometeu em um lugar ermo e distante, no alto de uma montanha contribui tanto para acentuar o caráter de seu castigo quanto para enfatizar sua natureza singular, diferenciando-o, pois Prometeu não é um criminoso qualquer a quem se poderia depositar, em meio a outros, em um cárcere qualquer. A altura da montanha em que Prometeu está preso conclama a altura do próprio Prometeu.
Um outro efeito dramático criado por Ésquilo nesta primeira cena surge do contraponto entre a truculência de Poder e a comiseração de Hefestos. Este último poderia guardar mais ódio de Prometeu que qualquer outro, pois como Poder diz a Hefestos em sua primeira fala:
O Poder - ... Ele roubou o fogo – teu atributo...
Mas assim não é. Por quê? Se Poder e Hefestos se posicionassem da mesma forma, condenando Prometeu indiscutivelmente, o herói surgiria ao espectador como culpado, e justo seria o duro castigo que lhe é imposto. Mas a compaixão de Hefestos serve para mostrar a injustiça da condenação.
Hefestos - Ai de ti, Prometeu! Como me penaliza tua desgraça!
Além disso é Hefestos, logo em sua primeira fala, quem anuncia a Prometeu a sua hybris:
Hefestos - Eis a conseqüência de tua dedicação pelos humanos; como deus, que tu és, fizeste aos mortais uma dádiva tal, que ultrapassou todas as prerrogativas possíveis.
Fosse Poder que o fizesse soaria de uma forma ainda mais condenatória.
Após a saída de Poder e Hefestos, sozinho, Prometeu proclama seu sofrimento. Desvairado indaga em monólogo quando será o fim de seu castigo, mas logo percebe o paradoxo que suas palavras lhe impõem:
Prometeu - Mas... que digo eu? O futuro não tem segredos para mim; nenhuma desgraça imprevista me pode acontecer.
É que, segundo Kitto, o drama da peça ocorre principalmente dentro do próprio Prometeu e seu sofrimento o confunde em relação a si mesmo, mas o herói se recobra logo, o que não contribui para melhorar sua situação, mais adiante ele diz:
Prometeu - Não me posso calar, nem protestar contra a sorte que me esmaga!
Ao fim de seu monólogo Prometeu ouve o coro que chega voando, contraste excelente para acentuar a imobilidade do herói. As ninfas oceânides, classificadas por Kitto como “donzelas do mar semi-imaginárias” contrastam, segundo ele, com Prometeu, “a rocha agrilhoada a uma rocha” (Kitto, pág. 116). É por meio da comiseração do coro em relação a Prometeu que Ésquilo extrai mais e mais indignação deste contra Zeus, efeito que certamente recaí sobre a platéia, pois segundo Patrice Pavis (1999), em seu Dicionário de Teatro, o coro é o espectador idealizado e para que o espectador real se reconheça no coro é preciso que ele compartilhe os valores transmitidos. Sabendo que a identificação é base para a realização do teatro grego é de se supor que a platéia de Ésquilo compartilhou com o coro a comiseração por Prometeu.
O coro, se forem divididos os personagens em dois blocos, se agrupará ao lado dos que defendem Prometeu. Por meio de seu diálogo pode-se reforçar a tese da imutabilidade ideológica e física do herói. Em sua primeira fala o coro reforça o contraste de seu movimento em relação a imobilidade de Prometeu:
O Coro - Nada Temas! É um bando amigo que, trazido pelas asas ligeiras, veio ter a este rochedo...
Prometeu por sua vez as saúda aludindo a Oceano, pai delas:
Prometeu - ... Oceano, cujas águas circundam a terra, com suas ondas em perenal movimento.
E a característica dada ao deus contrapõe-se a sua situação:
Prometeu - ...acorrentado a este íngreme rochedo, onde ficarei de sentinela, bem a meu pesar, pelos tempos a fora!
E é falando ao coro que Prometeu revela sua obstinação na resistência contra a vontade de Zeus, sua imutabilidade ideológica:
Prometeu - Mas em vão há de empregar as mais terríveis ameaças; não lhe revelarei tal segredo enquanto não houver rompido estas correntes e consentido em reparar minha injúria.
E as ninfas do coro reconhecem, admiradas, a irredutibilidade de Prometeu:
O Coro - Sempre a mesma altivez! Tu não cedes, Prometeu, mesmo no cúmulo da desgraça!
Após as oceânides Ésquilo coloca em cena Oceano, o foco sobre a imutabilidade que já se movera, da física para a ideológica, com o coro vai agora se firmar sobre este último, pois Oceano toma desde logo a posição de conselheiro:
O Oceano - ...convém que tomes, pois, outros sentimentos...
Antes disso, na sua primeira fala a Prometeu, Oceano declara-se amigo do Titã, mas não é na verdade um amigo incondicional, que apóia todas as suas ações, antes disso apresenta-se como amigo judicioso, que quer trazê-lo de volta à razão, à obediência a Zeus. É este posicionamento de Oceano que vai evidenciar ainda mais a irredutibilidade de Prometeu, a sua decisão de não curvar-se o mínimo sequer diante da vontade de Zeus. Oceano, preocupado com o agravamento dos castigos que o orgulho de Prometeu pode acarretar, exorta-o:
O Oceano – Abafa, ó infeliz, tua cólera impotente; procura alcançar o perdão... Talvez este conselho te pareça de um velho; mas tu sabes que males pode atrair um discurso insolente. Nada te pode humilhar, nada te pode abater... mas tu procuras redobrar teu sofrimento. Crê-me; curva-te sob o jugo: pensa que, atualmente, reina um senhor severo e supremo!
Mas Prometeu não cederá. Apesar de surpreso com a severidade de seu castigo, surpresa que ele mesmo evidenciou na mesma fala em que relatou sua hybris ao coro:
Prometeu – Eu havia previsto tudo... Eu quis cometer o meu crime! Eu o quis, conscientemente, não o nego! Para acudir aos mortais, causei minha própria perdição, mas nunca supus que me veria assim consumido sobre estes rochedos, no cume deserto de montanha inabitável.
Mesmo diante da crueldade de seu injusto castigo o herói mantém-se inabalável, e apesar do aceno de perdão que Oceano lhe assegura conseguir Prometeu permanece firme.
Prometeu – Abandona esses inúteis cuidados; tu não me farás ceder.
Além de seu posicionamento irredutível Prometeu revela, em suas falas, sua nobreza. Vítima de severo castigo ainda se mostra capaz de zelar pela segurança de Oceano, aconselhando-o:
Prometeu – Cuidado! Não te cause esta visita alguma desgraça!...
Oceano, mesmo censurando, reconhece a grandeza de Prometeu:
O Oceano – Sabes aconselhar aos outros bem melhor do que a ti mesmo... Disso estás dando prova...
Prometeu completa, dando mais mostras de sua magnanimidade:
Prometeu – Trata de procurar repouso e abrigo. Se eu sou desgraçado, não quero arrastar comigo a quem quer que seja, ao abismo da desgraça.
O Titã quer sempre preservar seu orgulho, que reflete sua impassibilidade, diante de Zeus, por isso não consente de forma alguma que Oceano interceda por ele junto ao senhor do Olimpo:
Prometeu – Tua sabedoria, Oceano, prescinde de meus conselhos... Deixa-me suportar minha sorte, até que a cólera de Zeus se abrande.
O Oceano – ignoras por acaso, ó Prometeu, que um discurso pode minorar a mais terrível cólera?
Prometeu – Sim, quando se espera o momento oportuno; não se choca violentamente um espírito irritado.
O Oceano – Que perigo vês tu, em que eu deseje e o tente conseguir?
Prometeu – Será esforço inútil, loucura e simplicidade.
O Oceano – Consinto em sofrer desses males... O sábio que se faz de ingênuo, muitas vezes realiza melhor seus propósitos.
Prometeu – Mas essa falsa tentativa me será atribuída.
Por fim o conselheiro Oceano, vendo baldado seus esforços, vai-se embora acatando os conselhos de Prometeu. Contraste interessante que reforça ainda mais força de vontade do herói. Após a saída de Oceano, cuja presença marcou fortemente a irredutibilidade ideológica de Prometeu, o coro volta a falar, e falando a Prometeu fazem, com suas palavras, novo contraste em relação a imobilidade física de Prometeu:
O Coro – Ó Prometeu! Como deploramos teu infeliz destino! De nossos olhos comovidos correm rios de lágrimas...
Prometeu não pode e não quer se mover, mas a sua atitude somada a sua situação, contraditoriamente, produz o movimento no choro das oceânides. E a volta do foco sobre a imutabilidade física de Prometeu se acentuará de forma ainda mais aguda coma entrada em cena de Io. Logo ao entrar em cena, em sua primeira fala, Io indaga e exclama o tempo todo revelando um agitação extrema de espírito contrastando com a serenidade de Prometeu, que neste ponto da peça já se mostrou tranqüilo e seguro, principalmente em seu orgulho de ser o benfeitor da humanidade:
Prometeu – Em suma: todas as artes e conhecimentos que os homens possuem são devidos a Prometeu.
Sua serenidade é confirmada ainda mais em sua próxima fala, mesmo após ter sido engrandecido pelo coro que o quis frontear a Zeus, Prometeu não se entregou a vaidade:
Prometeu – Não!... Não foi assim que dispôs o destino inexorável. Só depois de haver sofrido penas e torturas infinitas é que sairei desta férrea prisão. A inteligência nada pode contra a fatalidade.
A presença de Io em cena é a contraposição mais aguda à imobilidade de Prometeu. A descrição da jovem, na fala de Prometeu em resposta ao coro, comprova:
Prometeu – Sim... ouço a voz da infeliz a quem persegue um inseto cruel: é a filha de Ínaco, por que Zeus está apaixonado, e a quem Juno, ciumenta, obriga a fugir, sem repousa, numa corrida louca, por este mundo afora.
Mas é por causa de Io, no momento em que a ação dramática estabelece a mais aguda contraposição, maximizando a imobilidade da prisão de Prometeu diante da “carreira sem descanso” de Io, que ocorre uma ruptura na imutabilidade ideológica de Prometeu. Io interroga Prometeu acerca do crime do Titã, que se nega a responder, Io tenta saber então sobre qual será o fim de sua carreira dolorosa, mas Prometeu não está disposto a revelar-lhe nada:
Prometeu – Bem melhor será que o ignores, do que conhecê-lo.
Mas Io insiste:
Io – Oh! Não me ocultes coisa alguma do que me resta sofrer!
É bem verdade que esta recusa de Prometeu não está ligada aquela posição firme de não se dobrar à vontade de Zeus, mas é uma característica do Titã. Característica da qual ele abre mão apenas para Io, de quem ele se compadece, com quem ele se identifica. Afinal ambos não são injustiçados pelos deuses? Uma condenada a vagar sem descanso, o outro condenado a ficar para sempre preso a uma rocha. Mas é cedendo à vontade de Io que Prometeu torna a mostrar sua generosidade, mostrava já generosidade em sua recusa querendo poupar a jovem Io de seus sofrimentos vindouros, contudo mostra generosidade também ao atender ao pedido de quem, como ele, tanto sofre:
Prometeu – Visto que tanto empenho mostras, penso que devo satisfazer teu desejo.
É que ambos, Io e Prometeu, com suas condenações discrepantes sofrem de forma igual, Prometeu sabe bem disso, e após a intervenção do coro declara:
Prometeu – É sempre um conforto revelar nossas dores àqueles que nos ouvem condoídos, e nos comovem com suas lágrimas.
E é imbuído desse mesmo espírito de benevolência e generosidade que Prometeu cederá novamente, agora ao desejo do coro de conhecer o nome de seu libertador e ao de Io, de saber o restante de seus sofrimentos. O herói havia anunciado, a Io, resoluto:
Prometeu – Escolhe, pois: ou sabes o que te resta sofrer ainda, ou o nome de meu libertador.
Porém, coma intervenção do coro capitula:
Prometeu – Vós assim exigis, e eu nada vos posso negar!
Então Prometeu passa a contar todas as desventuras futuras de Io e ao fim de sua predição se dispõe a esclarecer todas as dúvidas da jovem, faz isso aludindo a sua situação de imobilidade após a narração da peregrinação incessante de Io:
Prometeu – Faze tuas perguntas, porque posso tudo esclarecer, para isso, bem contra minha vontade, tenho tempo de sobra.
No mais, Ésquilo, além de contrapor fortemente, à narração das peregrinações de Io, à situação desta com a de Prometeu, certamente para acentuar a úlitma, utilizou a presença da jovem em cena para que o espectador vislumbrasse o segredo que Prometeu possui como única arma contra Zeus. Indagado a respeito da natureza, divina ou mortal, da esposa com a qual Zeus gerará o filho que haveria de lhe tomar o trono, Prometeu responde:
Prometeu – Que te importa saber? A tal respeito guardarei segredo.
E é deste segredo, guardado por Prometeu, que Hermes vem em busca. Ele é o último personagem a entrar em cena, e em sua presença é novamente deslocado o foco da imutabilidade de Prometeu, que se voltará mais uma vez para a face ideológica do herói, e é diante de Hermes que ela se mostrará mais acentuada do que nunca. Hermes é o emissário e filho de Zeus, ele vem renovando as ameaças e prometendo castigos ainda mais terríveis ao herói e pretende arrancar do Titã o segredo do futuro de seu império que Zeus tanto deseja. Mais uma vez, porém, Prometeu não cederá. Após ser insultado por Hermes, que em nome de Zeus exige a revelação do segredo Prometeu responde:
Prometeu – Pensas porventura que me acovarde, e que me submeta a esses novos deuses? Longe disto estou, Hermes! Podes ir-te embora! Volta sem tardança ao lugar de onde vieste: nada mais saberás por mim.
É diante de Hermes, representante direto de Zeus, que Prometeu revela todo seu orgulho e irredutibilidade diante de toda injustiça e tirania. E o próprio Hermes é obrigado, logo de início, a reconhecer a obstinação do herói:
Hermes – Eis o invencível orgulho que tantas desgraças já te causou!
Hermes então muda de tática, tenta obter algo espezinhando e ironizando Prometeu e seu sofrimento. Ao ser afrontado pelo herói que lhe diz preferir o sofrimento por que passa em lugar de sua escravidão a Zeus Hermes responde:
Hermes – Sem dúvida, estás, presentemente, numa situação deliciosa!
E quando o herói Prometeu diz odiar o deuses todos, a quem ajudou, e de quem recebe apenas ingratidão e injustiça Hermes responde:
Hermes – Tens a razão conturbada, bem se vê; o mal é violento...
Prometeu revolta-se, e na sua revolta revela mais uma vez sua impassibilidade:
Prometeu – Enganas-te! E a prova é que nada te revelarei, vil escravo!
Hermes então apela ainda, e sua pergunta soa como uma súplica:
Hermes – Nada dirás, então, do que meu pai te ordena?
É agora a vez de Prometeu ironizar de deixar Hermes desconcertado:
Prometeu – Devo-lhe tantos benefícios, que, como vês, tenho obrigação de retribuir!...
Hermes – Prometeu, tu zombas de mim, e tratas-me como a uma criança!
Na resposta do herói Prometeu é reforçada sua obstinação e revelado o elo de ligação entre sua imutabilidade física e ideológica:
Prometeu – Por acaso não é uma infantilidade o pretenderes arrancar de mim uma revelação? Não há tormentos nem artifícios que me forcem a elucidar esse mistério a Zeus enquanto não forem rompidas as correntes que me prendem!
Indagado a respeito de sua obstinação o herói reforça:
Prometeu – Tudo já está por mim previsto: há muito tempo que esta minha resolução está tomada!
Mas Hermes insiste, e mais uma vez anuncia o aumento do castigo, das penas de Prometeu exortando-o a abrir mão de sua irredutibilidade que ele denomina teimosia, no entanto quem se pronúncia é o coro. Este que durante toda peça esteve ao lado do herói, agora acha razoáveis as exigências de Hermes e lhe aconselha uma capitulação:
O Coro – Hermes quer que abandones esse orgulho e adotes uma decisão sensata, ó Prometeu. O que ele diz, afigura-se-nos razoável... Crê! Para o sábio é uma vergonha perseverar no erro cometido.
Prometeu, no entanto mantém-se firme. Sua capacidade de saber o futuro já lhe dera o conhecimento de tudo o que viria a sofrer, assim ele anuncia já saber de seu destino. Anuncia também que haja o que houver; cataclismos terríveis ou tempestades violentas, ele permanecerá firme. Imutável.
Prometeu – Eu já sabia tudo, tudo, o que ele acaba de me anunciar!... Faça ele o que fizer!... eu hei de viver!
É que Ésquilo construiu o personagem Prometeu para resistir a toda tirania, castigos e injustiças divinas, e ao final da peça o herói não poderia se trair. Manteve-se como se portou por toda a obra, irredutível diante de todos e principalmente diante de si mesmo.
CAPÍTULO IV – CONSIDERAÇÕES FINAIS
Segundo Pallottini, (1989) o autor, ao criar um personagem o faz dando-lhe características que lhe serão necessárias para a sua “existência”. Prometeu era um personagem fiel apenas a si mesmo e arredio diante dos outros personagens, e foi usando exatamente os outros personagens que Ésquilo caracterizou o herói, fazendo-o interagir com eles, falando e ouvindo, influenciando e sendo influenciado. Porque no teatro, o diálogo entre os personagens é o que dá vida a peça, e nessa troca a caracterização do personagem principal se deu principalmente por meio do contraste com os seus interlocutores, que se viam, ora admirados com a irredutibilidade de Prometeu, ora impotentes de demovê-lo de sua posição ideológica de não se submeter à vontade de Zeus.
Como bem disse Junito Brandão, (1985, p. 19) “em Ésquilo as personagens existem em função da fábula”. Então se o tragediógrafo grego quis encenar o drama de Prometeu e escolheu colocá-lo em cena acorrentado era mister que suas caracterizações e os diálogos em torno dele ressaltassem sua situação dramática. Os exemplos apontados no capítulo anterior atestam que além de estar, Prometeu, agrilhoado a rocha de uma alta montanha, situação que era constantemente ressaltada a partir dos contrastes característicos ou dialógicos introduzidos pelos outros personagens, estava também preso, fiel a sua própria ideologia de insubordinação a Zeus, posição que se anunciou por toda a peça por meio das falas do herói e pelas falas de seus interlocutores.
Vimos então que a ação da peça não se desenvolve a partir de acontecimentos, mas ocorre, segundo Kitto (1972), em um movimento de intensificação dramática que se verifica dentro do espírito do herói Prometeu, é que, ainda segundo Kitto, Ésquilo dramatizou em Prometeu Acorrentado as emoções, e não os acontecimentos, onde a situação do herói é a maior representação da peça, não no que ele faz, mas no que ele sente e no que ele é. As revelações tomam lugar da ação e do movimento, e são as revelações dos personagens, a narração do drama de Io, a comiseração do coro e de Hefestos, a truculência de Poder, a possibilidade de perdão que Oceano oferece ao herói e o anúncio de Hermes, diante da última prova de insubordinação do herói, do agravamento da penas de Prometeu, que fundamentam e caracterizam a tensão crescente de uma situação que não se move durante toda a peça.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRANDÃO, Junito de Souza. Teatro grego: tragédia e comédia. São Paulo: Vozes, 1985.
COSTA, Lígia Militz da. A poética de Aristóteles: mímese e verossimilhança. São Paulo: Ática, 1992
KITTO, H. D. F. A tragédia grega. Coimbra: Armênio Armado Editor, 1972.
LESKY, Albin. História da literatura grega. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1995.
PALLOTTINI, Renata. Dramaturgia: a construção do personagem. São Paulo: Ática 1989.
PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro. São Paulo: Perspectiva, 1999.
VERNANT, Jean-Pierre. Mito e pensamento entre os gregos. Rio de Janeiro: Paz e Terra 2002.
VERNANT, Jean-Pierre. Mito e tragédia na Grécia antiga. São Paulo, Brasiliense, 1991.
[1] Jean-Pierre Vernant em Mito e Tragédia na Grécia Antiga, 1991, p. 120 afirma que na obra de Ésquilo existem dois tipos de escravos: por destinação e por captura.
[2] Conselho de membros da aristocracia Ateniense.
[3] Assembléia de cidadãos encarregados de deliberar sobre assuntos da cidade.
[4] Cidadão responsável pelas apresentações teatrais em Atenas.
O estudo de Prometeu Acorrentado justifica-se nesta pesquisa devido ao meu grande interesse pelo personagem central da peça. O personagem de Ésquilo desperta grande atenção por sua coragem, altruísmo, orgulho, e, sobretudo por ser um exemplo de insubordinação contra poderes e autoridades arbitrárias e tirânicas. A sua atitude impressiona ainda mais pelo fato de ser conhecedor do caráter terrível de seu castigo e, mesmo assim, seguir em frente em seu intento de beneficiar os seres humanos.
Outro fato que move meu interesse por Prometeu é ele ser um exemplo de herói magnânimo, honesto e fiel aos seus princípios, características que lhe impossibilitam curvar-se à vontade dos deuses poderosos. Prometeu, como é apresentado na peça de Ésquilo, é o exemplo do tipo de herói que a arte de nosso tempo não mais produz, e, mesmo sendo compreensível que nossa sociedade, sendo outra, produza, na arte, seus próprios tipos de heróis, é necessário a valorização do personagem esquiliano como referência de uma criação artística produto de uma sociedade com características específicas, e também como exemplo de uma arte que pode funcionar como elemento de transformação do ser humano em sua luta contra as adversidades, prevenindo-o contra a conformação com as mesmas.
A fidelidade de Prometeu aos seus princípios torna-se ainda mais óbvia quando se observa o próprio arranjo cênico da peça, na qual Ésquilo postou seu herói em uma posição de imutabilidade física extrema, imutabilidade física que é ao mesmo tempo confirmação e metáfora de sua atitude de não aceitação dos desígnios de Zeus e seus comandados, pois diante deles Prometeu permanece sempre constante em sua insubordinação. Esta característica de imutabilidade física, que Ésquilo deu a Prometeu, surge como objeto interessante à pesquisa, pois sendo o teatro um gênero que pressupõe ação, Aristóteles mesmo diz em sua Poética: “Ademais, sem ação não poderia haver tragédia;” um pouco antes, também no capítulo VI ele disse ainda: “É a tragédia a representação de uma ação grave, com atores agindo e não narrando” sendo assim como a construção esquiliana do personagem Prometeu se justifica?
É a tentativa de responder esta pergunta que moverá o meu interesse nesta pesquisa, que se centrará principalmente no arranjo cênico da peça. Em função disto investigarei de que formas o arranjo cênico peculiar criado por Ésquilo para sua obra Prometeu Acorrentado contribuiu para a configuração do personagem Prometeu.
CAPÍTULO I – PROMETEU ACORRENTADO E A TRAGÉDIA GREGA
A peça de Ésquilo, Prometeu Acorrentado, objeto deste estudo, é uma das mais conhecidas obras do teatro trágico grego, despertando interesse e discussão em diversas áreas de pesquisa tais como antropologia, sociologia e filologia.
Antes de iniciar o estudo de Prometeu, o personagem principal, é preciso conhecer melhor o gênero tragédia grega desde sua origem, passando pela compreensão da obra trágica de Ésquilo, até chegar a forma como o autor adaptou o mito de Prometeu à sua obra, na tentativa de desvendar as caracterizações elaboradas pelo autor na construção de Prometeu, na peça Prometeu Acorrentado.
Este primeiro capítulo será destinado a estas tarefas que serão muito importantes para um desenvolvimento mais claro e objetivo deste estudo.
Segundo Lesky (1995), as origens da tragédia, que remontam à época arcaica, configuram um dos problemas mais difíceis e discutidos da literatura grega. Sabe-se que naquele período as colônias gregas, tanto a leste como a oeste, viviam um momento de efervescência em diversos domínios. Ao contrário, a metrópole passava por um momento de estabilidade que possibilitou um apuramento, uma evolução da arte dramática em solo ático. Decorrida nesse momento histórico, a evolução está constatada em obras posteriores, o que nos testemunha o progresso e aperfeiçoamento do drama no período arcaico. Contudo, estas manifestações não chegaram até nós em forma de literatura e tampouco em forma de dados e informações sobre as obras dos escritores daquele período, alcançando-nos tão somente por meio de doxografia. Mas acima de tudo temos ainda as obras do século V a. C. que atestam a presença da elaboração no período arcaico.
Em sua História da Literatura Grega, Lesky (1995) coloca-se ao lado de Aristóteles, aceitando a Poética como fonte segura para conhecer a gênese da tragédia, em detrimento de representantes de uma tendência etnológica que rivalizam com as indicações de Aristóteles, considerando-as equivocadas. Os debatedores de Aristóteles tentam derivar a tragédia das danças e ritos mímicos de vegetação dos povos primitivos. Lesky por sua vez rebate esta idéia alegando que o material etnológico, apesar de também ter contribuído para o desenvolvimento do gênero trágico, é um dado comum a muitos outros povos que não desenvolveram a tragédia, vindo esta a florescer exatamente e exclusivamente em solo grego. Lesky (1995) argumenta ainda que é preciso considerar a posição privilegiada de Aristóteles na história, o fato do filósofo ter vivido, e construído sua obra em um período muito próximo ao do florescimento do tema que trata. Lesky (1995) ainda aponta um outro fator que legitima e dá credibilidade ao filósofo grego, o conhecimento de que Aristóteles fez, assim como para sua Política, estudos preliminares muito cuidadosos também, para a Poética.
De acordo com Lesky (1995) é no capítulo IV da Poética de Aristóteles que o filósofo grego dá a solução para a origem da tragédia, que segundo o filósofo surgiu dentro do ditirambo, do embate entre o coro e o corifeu, embate este que evoluiu para o desenvolvimento posterior do elemento dialógico e dramático. O ditirambo era o canto em honra ao deus Dionísio que, passando por processos de transformações em direção a uma forma artística, constituiu um elemento primordial da formação da tragédia. Mas mesmo em Aristóteles a origem da tragédia é um tema permeado de complicações. O autor da Poética, em sua própria obra aponta uma segunda origem para a tragédia grega. De acordo com Lesky (1995) o filósofo afirma que inicialmente a tragédia era formada de pequenos temas carregados de uma linguagem jocosa, que apenas mais tardiamente assumiu uma forma de absoluta dignidade, ao distanciar-se do satyrikon. Para compreender bem este processo é preciso ter em mente que o satyrikon tratado por Aristóteles na Poética não é aquele na forma de drama satírico aperfeiçoado, que se configurou da forma que o conhecemos só após o estabelecimento da tragédia. Durante o curso de seu desenvolvimento, a tragédia sofreu influência do elemento satírico, que também caminhava, absorvendo-o progressivamente, porém sem dar a este posição de destaque, mantendo-o em segundo plano.
Mas quando e de que forma se deu o encontro do ditirambo com o satírico para que ambos fossem considerados elementos originários da tragédia? A resposta a esta pergunta encontramo-la, segundo Lesky (1995) em Heródoto e na Suda, que apontam, segundo a tradição, Aríon como o primeiro a compor um ditirambo, dar-lhe nome e representá-lo em Corinto. Aríon também é apontado como o primeiro a ter composto um coro, a cantar um ditirambo e nomear a parte cantada pelo coro, além de ter introduzido sátiros falando em versos. Lesky pontua ser evidente que Aríon não foi o inventor do canto do culto à Dionísio, mas seu valor está no fato de ter dado ao ditirambo uma forma artística dentro da lírica coral e ter feito com que sátiros representassem estes ditirambos de forma artística. Assim estabelecida a maneira como os dois elementos, ditirambo e satírico, se uniram, formou-se a base segura para a afirmação da Poética sobre a dupla origem da tragédia.
Uma outra questão relacionada à gênese da tragédia é o fato de seu tema ser dissonante de seus elementos originários. Apesar de conter, vários elementos dionisíacos herdados do ditirambo e do satírico, o tema, invariavelmente trágico, suscitou já entre os antigos estudiosos uma frase proverbial: Isto nada tem a ver com Dionísio. A explicação que Lesky (1995) encontrou para esta questão é que, na época dos tiranos, o culto a Dionísio, o deus dos camponeses, foi extremamente incentivado por aqueles governantes. Ao lado disso, os governantes incentivaram homenagens aos heróis por meio da tragédia. Isso levou a lenda heróica a figurar como conteúdo do drama trágico. Os mitos dos heróis, após o período épico e da lírica coral, passaram a figurar na tragédia como base para a problemática ético-religiosa do gênero que, com este novo elemento, aproximou-se mais do povo, pois os mitos dos heróis eram parte de sua história. Entretanto, apesar da aproximação com o tema heróico, a tragédia pôde manter, relativamente ao objeto tratado, o distanciamento necessário a toda grande obra de arte.
Estabelecidas assim, a partir de Lesky (1995), as origens da tragédia, podemos avançar rumo a uma relação da tragédia com a obra que pretendemos estudar. O tema de Ésquilo, em Prometeu Acorrentado, resumido como a história de um herói, que, por desafiar um deus todo poderoso, é castigado, pode ser considerado como eco artístico da situação vivida pelos gregos, especialmente aqueles que eram adeptos do culto de Dionísio. De acordo dom Junito Brandão (1985), nos rituais desse deus ocorria um processo de embriagues de êxtase e entusiasmo a partir do qual o adepto tornava-se o homo dionysiacus, libertando-se neste estado dos interditos de ordem ética, política e social, ultrapassando desta forma o “métron”, que significa a medida de cada um. Nesta situação o homem comum torna-se o ATOR, um outro, além de, ao ultrapassar o métron comete uma démesure, uma hybris, uma violência cometida contra si e os deuses imortais, o que provoca a nemesis, o ciúme divino, o que acarreta posteriormente uma punição. De certa forma esta situação de desobediência à ordem divina era também uma desobediência ao estado. Não temos pretensão aqui de afirmar que o drama criado por Ésquilo em Prometeu Acorrentado seja um instrumento didático de fundo estatal ou religioso, no entanto fica claro que o tema da tragédia em questão correspondia a uma situação social do mundo grego.
Ésquilo, o mais antigo da tríade de trágicos completada por Sófocles e Eurípedes, é considerado o mais ritualístico entre os três famosos tragediógrafos gregos. A propósito disso Junito Brandão salienta que “o teatro esquiliano é muito mais uma teomorfização que uma antropomorfização.” Esta afirmação, se colocada, principalmente, sobre Prometeu Acorrentado, pode servir muito bem para ajudar na compreensão da obra trágica de Ésquilo.
Pensemos em um primeiro momento na questão da mímese, a imitação no drama do Titã parece criar uma situação de elevação do herói, que já sendo um ser divino, cresce ainda mais durante a trama em função de sua coragem, altruísmo e certeza da natureza benéfica de seu ato heróico em favor da humanidade, o que lhe acarreta martírios dolorosos, os quais ele enfrenta sem medo e com orgulho. Dessa forma, Prometeu, um ser de caráter divino diviniza-se ainda mais devido a heroicidade de seu ato e de seu comportamento imutável mesmo diante do pesado e duro castigo. A conduta de Prometeu, se considerarmos que o herói da tragédia seja um exemplo a ser seguido pelo espectador, assim parece, pode ter o mesmo efeito de elevação sobre a platéia, um efeito de identificação com o herói de caráter divino, daí a teomorfização do próprio espectador da obra de Ésquilo. Junito Brandão (1985) pontua também que os personagens esquilianos são mais heróis que homens, vivendo um drama de luta desesperada entre as trevas e a luz. Em Prometeu Acorrentado, esta equação de confronto entre luz e trevas travou-se no próprio herói, que preferiu, compadecido, roubar o fogo dos deuses Olímpicos para através dele legar aos seres humanos a luz divina que lhes animaria o gênio, o espírito e as artes, ao invés de abandoná-los à sorte que Zeus a eles destinara, de permanecerem nas trevas da ignorância.
Junito Brandão (1985), analisando outra peça de Ésquilo, Os Persas, aponta a Moira como filosofia básica do teatro esquiliano. A fatalidade cega castiga o homem, mas este também é responsável por seu destino, pois o atraiu para si quando ultrapassou o métron. É o que ocorreu com Xerxes em Os Persas, o rei Persa ultrapassou sua medida ao ambicionar derrotar o exercito grego, e a fatalidade que o esmagou foi a derrota completa de seu exército. O mesmo processo ocorre também em Prometeu Acorrentado, onde o herói Prometeu comete uma hybris ao roubar o fogo divino, ultrapassando seu métron mesmo já sabendo o castigo que Zeus iria lhe impor. Dessa forma, Prometeu também é esmagado pela moira, tendo também responsabilidade quanto ao seu destino, pois sendo o herói da peça conhecedor do futuro, já sabia o que lhe acarretaria a ultrapassagem de sua medida. Outra afirmação de Junito Brandão é a de que o teatro esquiliano é um drama sem esperanças e sem promessas, Junito afirma também que para Ésquilo do sofrimento advém sabedoria, pensando estas afirmações em relação à Prometeu Acorrentado podemos constatar isso, principalmente através do drama da personagem Io, a qual está condenada a sofrer um martírio duradouro, e é através do sofrimento de sua perseguição que Io faz compreender a tirania divina.
Outro estudioso, Vernant (1991), no segundo volume de seu livro, Mito e Tragédia na Grécia Antiga, aponta que no teatro esquiliano a intervenção entre o mundo divino e o mundo humano é constante. Os dois universos refletem-se constantemente em uma corrente na qual conflitos humanos correspondem aos conflitos divinos, onde a tragédia humana é também uma tragédia divina. No caso de Prometeu Acorrentado a analogia é simples se pensarmos em relações de poder político, onde o herói pode ser interpretado como representante do povo em seu ato de insubordinação contra o poder tirânico de Zeus. Um outro apontamento de Vernant (1991) em relação ao teatro esquiliano é a representação cênica de onde o drama trágico se desenrola. Segundo o autor, na tragédia deve existir um processo de reconhecimento e de questionamento da cidade por ela mesma, por isso é que a ação cênica é desenvolvida na maioria das vezes diante de um palácio real ou de um templo, mas em uma das exceções a essa regra inclui-se Prometeu Acorrentado, cuja cena desenvolve-se em uma montanha, um lugar ermo, longe da cidade, essa característica singular de Prometeu Acorrentado será objeto de análise, para fundamentar a idéia da imutabilidade física e ideológica, em um dos próximos capítulos deste trabalho.
Um outro tema de Prometeu Acorrentado abordado por Vernant (1991), é a situação do escravo dentro da obra de Ésquilo. O autor destaca que na peça referida o papel do escravo foi elaborado de forma muito enriquecida por Ésquilo, pois o autor colocou o Titã Prometeu, um ser divino, sendo castigado como um escravo por Zeus que nessa visão desempenha um papel de senhor e tirano. Há ainda o contraste entre a escravidão de Prometeu e a servidão voluntária a Zeus que o herói atribui a Hermes, considerando-a ainda mais repugnante que o sofrimento de seu castigo[1].
Em relação ao mito de Prometeu, Jean-Pierre Vernant (2002) atenta para a existência de mitos de dois Prometeus com algumas características distintas. O primeiro, deus das indústrias do fogo, ceramista e metalúrgico, o segundo, o Titã envolvido no tema dos conflitos entre as gerações divinas. Em Prometeu Acorrentado Ésquilo apresenta um herói que é a fusão desses dois, colocando em cena um Prometeu, portador do fogo tomado dos deuses e castigado, vítima da cólera de Zeus. Vernant (2002) mostra, comparando Prometeu com o Zeus presente em Hesíodo, uma imagem negativa do primeiro. A comparação evidencia um Zeus cuja inteligência é regida pela ordem e pela justiça enquanto a inteligência de Prometeu provém de cálculo e astúcia, caracterizando assim seus pensamentos como sendo fraudulentos e sua previdência muitas vezes causadora de enganos levando Prometeu a ser considerado, por vezes, imprudente e irrefletido. Poderíamos fazer essa mesma leitura de Prometeu na peça, contudo se o herói que Ésquilo apresentou talvez tenha sido imprevidente, ou inconseqüente, sua conduta é perdoável se colocarmos em vista seu objetivo de auxiliar os seres humanos, que somente nele encontraram amparo, caso típico em que os fins justificaram os meios. Vernant (1991), aponta ainda uma característica geral de Prometeu que aparece além de em Ésquilo, em Hesíodo e em Platão, a do encarregado de distribuir a cada um a sua parte. Platão mostra Prometeu junto com Epimeteu, seu irmão, encarregado de distribuir aos seres da criação “as qualidades de maneira conveniente”. Em Hesíodo ele é o árbitro da disputa entre os deuses e os homens, investido da tarefa de fixar a ração de cada um. Em Ésquilo, finalmente, Prometeu é o único a lembrar-se da raça humana, opondo-se aos planos de Zeus, quando este reparte os privilégios entre os deuses e demarca os níveis de seu império.
Nota-se que, segundo Vernant (1991), apenas em Ésquilo surge a preocupação de Prometeu com os seres humanos e, além disso, somente na construção do personagem trágico o herói do mito surge como contestador de uma ordem pré-estabelecida, enquanto que em Platão e Hesíodo ele simplesmente cumpre funções que lhe foram destinadas. O que se pôde observar é que, diante das diversidades relacionadas ao mito, Ésquilo optou por reforçar a imagem do herói divino, benfeitor da humanidade, que com seu altruísmo e orgulho frente aos injustos castigos eleva-se ainda mais diante da platéia, trazendo esta junto de si em sua elevação trágica por meio do processo de identificação que marca a arte dramática grega.
Mas além de estudar o mito, as formas e opções das quais se valeu Ésquilo na construção de sua obra, seria interessante também observar o contexto histórico-social no qual todos os elementos abordados, inclusive o autor estavam inseridos. Passemos ao próximo capítulo.
CAPÍTULO II – ÉSQUILO E PROMETEU - POLÍTICA E MITOLOGIA GREGA
De acordo com Vernant (1991), no segundo volume de Mito e Tragédia na Grécia Antiga, Ésquilo foi contemporâneo às Guerras Médicas, tendo inclusive lutado nas batalhas de Maratona e Salamina. Tinha cerca de dezoito anos quando Clístenes operou as grandes reformas que posteriormente introduziram a democracia em Atenas. Foi contemporâneo também das disputas dos democratas, dentre os quais se destacaram Elfiates e Péricles, contra seus opositores.
Sabe-se que Elfiates enfraqueceu o Aerópago[2], tornando a Boulé[3], junto com a assembléia popular o único órgão com função política em Atenas, mas não se sabe como Ésquilo viveu esta importante mudança na pólis, tampouco sabe-se seu posicionamento e como ele votou na assembléia. Duas indicações exteriores à sua obra, apesar de não trazerem luz à questão, são importantes, mesmo apontando cada uma delas posicionamentos diferentes. A primeira diz respeito ao seu corego[4], que em 472 a. C. era Péricles, isso nos leva claramente a fixar para Ésquilo, nesta época, a posição de democrata. Por outro lado o epitáfio do dramaturgo omite toda sua obra literária, fazendo menção apenas a sua participação na batalha de Maratona em detrimento a de Salamina, o que o coloca, ideologicamente, ao lado da república dos hoplitas, opositora da democracia.
Sendo, por enquanto, insolúvel a questão do posicionamento político/ideológico de Ésquilo durante o advento da democracia em Atenas, voltemos então o olhar para o que diz Vernant (1991) sobre a tragédia neste período. Ainda no segundo volume de Mito e Tragédia na Grécia Antiga, o autor citado afirma que a tragédia é uma forma de identificação da cidade democrática. Ao opor o ator ao coro ela representa o mito do príncipe tornado tirano, questionando-o ao mostrar seus erros que finalmente o levam à catástrofe, a síntese da cegueira real. O povo, segundo Vernant (1991), não está presente no palco da tragédia, seu lugar é nos degraus do teatro. O coro, que poderia desempenhar o papel do povo, é em Ésquilo composto por Fúrias em Eumênides, escravas em Sete contra Tebas, Suplicantes e Coéforas, e em Prometeu Acorrentado pelas deusas oceânides. Em Ésquilo o povo é na verdade apenas representado por meio de figurantes mudos.
Essas informações históricas, se confrontadas com Prometeu Acorrentado parecem não ser de grande valia para relacionar de forma exata e segura a obra com a situação política vigente, visto que os personagens de Ésquilo na peça pertençam todos a categoria dos deuses olímpicos. Mas isso não exclui, absolutamente, a possibilidade do autor ter usado em sua obra analogias entre esses deuses e os governantes de sua época, principalmente porque a peça trata do poder tirânico, da injustiça e da insubordinação, elementos presentes nos embates políticos universais.
Dessa forma resta buscar os aspectos culturais presentes entre os gregos para situar a análise da obra o mais próximo possível do universo que lhe é próprio.
No capítulo anterior já foi abordada a questão relativa à duplicidade mitológica de Prometeu. Um dos mitos mostrava-o como deus das indústrias do fogo, o outro como o Titã envolvido nas disputas entre as gerações divinas. Foi mostrado também um aspecto mitológico comum - o de dar a cada um a sua parte - é essa a função de Prometeu em Hesíodo, Platão e Ésquilo. A partir disso percebemos que Ésquilo utilizou-se do macrocosmos mitológico grego para construir sua obra trágica, ora adaptando à sua necessidade artística dois mitos de certa forma distintos embora concernentes a um mesmo personagem, ora utilizando-se do mito de forma consensual à que os gregos já conheciam. As adaptações do mito criaram um microcosmos que é a própria peça Prometeu Acorrentado.
Kitto, outro estudioso da tragédia grega fala sobre as adaptações e apropriações feitas por Ésquilo para a construção de Prometeu Acorrentado. Em sua obra, A Tragédia Grega, (1972) ele diz que o mito em Hesíodo oferecia um deus menor, ardiloso, que simplesmente roubou o fogo para dá-lo aos mortais. Ésquilo por sua vez “transformou-o num deus que tinha dado ao homem tudo que o distinguia da criação bruta e lhe dava possibilidades de se medir com Zeus.” (Kitto 1972, p. 195) Mas adiante, na mesma obra, Kitto afirma, em relação a toda obra do dramaturgo grego, que Ésquilo foi capaz de criar seus próprios mitos para servir-se deles como desejava, fazendo com que eles comunicassem o que ele queria, evitando que suas peças seguissem histórias já existentes. As informações acima, acerca da época e da obra de Ésquilo, não são suficientes para caracterizar seu posicionamento durante as transformações que Atenas sofreu, tampouco são capazes de demonstrar, em suas obras, simpatia ou antipatia pelo advento da democracia, por outro lado elas atestam que Ésquilo foi um autor maior, que, por meio de sua arte, utilizando-se da mitologia, expressão cultural tão própria dos gregos, foi capaz de criar, em uma obra como Prometeu Acorrentado, um enredo universal, que traduz a eterna luta entre oprimidos e opressores, e um herói superior e exemplar, na medida em que toma para si a responsabilidade de proteger os mais fracos diante dos mais fortes ao custo de sua própria destruição.
CAPÍTULO III – PROMETEU – O HERÓI IMUTÁVEL
Prometeu Acorrentado - única peça remanescente de uma trilogia - trata do castigo do Titã Prometeu, herói da peça, que, por ter roubado o fogo dos deuses para dá-lo aos humanos, é condenado a ficar acorrentado a uma montanha, sob as intempéries da natureza, para expiar a culpa que Zeus e os deuses Olímpicos lhe atribuem, e ser coagido a revelar um segredo, de grande valia para Zeus, que apenas ele detém. Mas Prometeu não se julga culpado, antes sente-se injustiçado pelo senhor dos deuses, e é por meio deste conflito entre o Titã e Zeus que se dará a ação dramática da peça. Renata Pallottini, em seu livro Dramaturgia, Construção do Personagem (1989, p. 11) diz que “ação dramática é o movimento interno da peça de teatro, um evoluir constante de acontecimentos, de vontade, de sentimentos e emoções, movimento e evolução que caminham para um fim, um alvo, uma meta”. Mas a ação dramática em Prometeu Acorrentado não corresponde inteiramente à definição de Pallottini, pois na peça em questão a relação entre a evolução de acontecimentos e o movimento são nulos. Esta afirmação, extraída a partir da análise da peça, na qual o herói permanece durante toda a cena, acorrentado, é compartilhada por Kitto (1972, p. 111), segundo ele, Ésquilo dramatiza efetivamente, em Prometeu Acorrentado, as emoções e não os acontecimentos. Temos portanto um conceito de ação dramática que pressupõe, entre outros elementos, evolução de acontecimentos e movimento para a evolução de uma peça, por outro lado temos uma peça onde a evolução de acontecimentos e o movimento são nulos, e é neste ponto de divergência, entre o conceito de evolução dramática e a ausência, em Prometeu Acorrentado, de dois de seus elementos necessários, que surge o problema a ser analisado neste trabalho.
Imutabilidade. Esta é a característica principal de Prometeu na peça, e é por meio da presente análise que mostraremos duas faces dela, a física, a ideológica, e a forma como Ésquilo fortaleceu a segunda a partir da primeira, simultaneamente, na construção do personagem. E a melhor forma para isso, já que se trata de um texto dramático, é proceder a análise, principalmente, a partir dos diálogos, das falas de cada personagem que interage com Prometeu, levando-se muito em conta a opinião de Kitto (1972), quando ele diz que toda a atenção da peça gira à volta de Prometeu, e que tudo acontece em função do herói, Kitto (1972, p. 109) afirma: “Olhamos sempre a partir das personagens menores para o herói”. Este é um dado importante e será a pista que guiará a análise. Outro dado importante é ter a noção clara do que é um personagem dramático, vejamos o que Pallottini(1989, p. 13) diz a respeito:
...o personagem, esse contorno de ser humano feito por um criador, mais ou menos preenchido de detalhes, imitador de uma pessoa, que está destinado a cumprir um papel na peça de teatro, dizendo, fazendo, agindo, mostrando-se por gestos, atitudes, entonações, levando adiante a ação dramática que é a essência da obra teatral.
Juntamente com a análise da interação de Prometeu com os personagens menores estaremos atentos ao personagem do herói, aos detalhes com os quais Ésquilo o proveu, ao seu destino dentro da peça, seus gestos, atitudes e a forma como é conduzida, por meio dele, a ação dramática da peça.
Mas antes dos diálogos dos personagens menores com o herói há o silêncio de Prometeu, segundo Pallottini o silêncio sempre diz algo, e este algo caracteriza o personagem em seu momento dramático na peça. Vejamos: a cena do agrilhoamento estabelece, logo no início, a imutabilidade física de Prometeu, que perdurará durante toda a peça, este recurso de Ésquilo é muito importante e significativo para a caracterização do herói, que, além de permanecer estático fisicamente, permanecerá estático também ideologicamente, defendendo sempre, diante das pressões de Zeus, seu orgulho e dignidade. Começar a peça a partir deste episódio imprimiu uma grande força dramática à obra pois, segundo Pallottini (1989, p. 72), “o que se vê tem muito mais impacto do que simplesmente se ouve, o que é feito no palco, em geral, não se perde; o que é dito sim, muitas vezes.” Em cena o herói é agrilhoado por Hefestos sob as ordens implacáveis de Poder, o diálogo entre os dois últimos é importante, pois acentua a expressividade do silêncio de Prometeu. Kitto, (1972) aponta que Ésquilo se aproveitou otimamente do terceiro ator nesta cena, pois dessa forma, através do terceiro ator foi possível representar a cena do agrilhoamento preservando o “efeito dramático do silêncio desdenhoso de Prometeu”, que tinha o espírito voltado para Zeus e não se rebaixaria ao ponto de conversar com seus carrascos. Kitto (1972) afirma ainda que diante do silêncio de Prometeu seria forçoso que um outro ator falasse, mas um monólogo não teria o mesmo valor dramático de um diálogo neste momento, onde o diálogo calhou bem melhor, possibilitado pela presença do terceiro ator. O autor mostra que Ésquilo poderia, ao invés do terceiro ator ter feito entrar em cena o coro, porém pondera que isso sacrificaria o efeito dramático da solidão extrema do lugar.
O herói em silêncio diante de seus carrascos mostra ao espectador seu orgulho resistência e dignidade, e assim desde a primeira cena demonstra sua obstinação em manter-se senhor de si e de sua grandeza que o impossibilita pedir clemência ou mostrar-se arrependido. O agrilhoamento de Prometeu em um lugar ermo e distante, no alto de uma montanha contribui tanto para acentuar o caráter de seu castigo quanto para enfatizar sua natureza singular, diferenciando-o, pois Prometeu não é um criminoso qualquer a quem se poderia depositar, em meio a outros, em um cárcere qualquer. A altura da montanha em que Prometeu está preso conclama a altura do próprio Prometeu.
Um outro efeito dramático criado por Ésquilo nesta primeira cena surge do contraponto entre a truculência de Poder e a comiseração de Hefestos. Este último poderia guardar mais ódio de Prometeu que qualquer outro, pois como Poder diz a Hefestos em sua primeira fala:
O Poder - ... Ele roubou o fogo – teu atributo...
Mas assim não é. Por quê? Se Poder e Hefestos se posicionassem da mesma forma, condenando Prometeu indiscutivelmente, o herói surgiria ao espectador como culpado, e justo seria o duro castigo que lhe é imposto. Mas a compaixão de Hefestos serve para mostrar a injustiça da condenação.
Hefestos - Ai de ti, Prometeu! Como me penaliza tua desgraça!
Além disso é Hefestos, logo em sua primeira fala, quem anuncia a Prometeu a sua hybris:
Hefestos - Eis a conseqüência de tua dedicação pelos humanos; como deus, que tu és, fizeste aos mortais uma dádiva tal, que ultrapassou todas as prerrogativas possíveis.
Fosse Poder que o fizesse soaria de uma forma ainda mais condenatória.
Após a saída de Poder e Hefestos, sozinho, Prometeu proclama seu sofrimento. Desvairado indaga em monólogo quando será o fim de seu castigo, mas logo percebe o paradoxo que suas palavras lhe impõem:
Prometeu - Mas... que digo eu? O futuro não tem segredos para mim; nenhuma desgraça imprevista me pode acontecer.
É que, segundo Kitto, o drama da peça ocorre principalmente dentro do próprio Prometeu e seu sofrimento o confunde em relação a si mesmo, mas o herói se recobra logo, o que não contribui para melhorar sua situação, mais adiante ele diz:
Prometeu - Não me posso calar, nem protestar contra a sorte que me esmaga!
Ao fim de seu monólogo Prometeu ouve o coro que chega voando, contraste excelente para acentuar a imobilidade do herói. As ninfas oceânides, classificadas por Kitto como “donzelas do mar semi-imaginárias” contrastam, segundo ele, com Prometeu, “a rocha agrilhoada a uma rocha” (Kitto, pág. 116). É por meio da comiseração do coro em relação a Prometeu que Ésquilo extrai mais e mais indignação deste contra Zeus, efeito que certamente recaí sobre a platéia, pois segundo Patrice Pavis (1999), em seu Dicionário de Teatro, o coro é o espectador idealizado e para que o espectador real se reconheça no coro é preciso que ele compartilhe os valores transmitidos. Sabendo que a identificação é base para a realização do teatro grego é de se supor que a platéia de Ésquilo compartilhou com o coro a comiseração por Prometeu.
O coro, se forem divididos os personagens em dois blocos, se agrupará ao lado dos que defendem Prometeu. Por meio de seu diálogo pode-se reforçar a tese da imutabilidade ideológica e física do herói. Em sua primeira fala o coro reforça o contraste de seu movimento em relação a imobilidade de Prometeu:
O Coro - Nada Temas! É um bando amigo que, trazido pelas asas ligeiras, veio ter a este rochedo...
Prometeu por sua vez as saúda aludindo a Oceano, pai delas:
Prometeu - ... Oceano, cujas águas circundam a terra, com suas ondas em perenal movimento.
E a característica dada ao deus contrapõe-se a sua situação:
Prometeu - ...acorrentado a este íngreme rochedo, onde ficarei de sentinela, bem a meu pesar, pelos tempos a fora!
E é falando ao coro que Prometeu revela sua obstinação na resistência contra a vontade de Zeus, sua imutabilidade ideológica:
Prometeu - Mas em vão há de empregar as mais terríveis ameaças; não lhe revelarei tal segredo enquanto não houver rompido estas correntes e consentido em reparar minha injúria.
E as ninfas do coro reconhecem, admiradas, a irredutibilidade de Prometeu:
O Coro - Sempre a mesma altivez! Tu não cedes, Prometeu, mesmo no cúmulo da desgraça!
Após as oceânides Ésquilo coloca em cena Oceano, o foco sobre a imutabilidade que já se movera, da física para a ideológica, com o coro vai agora se firmar sobre este último, pois Oceano toma desde logo a posição de conselheiro:
O Oceano - ...convém que tomes, pois, outros sentimentos...
Antes disso, na sua primeira fala a Prometeu, Oceano declara-se amigo do Titã, mas não é na verdade um amigo incondicional, que apóia todas as suas ações, antes disso apresenta-se como amigo judicioso, que quer trazê-lo de volta à razão, à obediência a Zeus. É este posicionamento de Oceano que vai evidenciar ainda mais a irredutibilidade de Prometeu, a sua decisão de não curvar-se o mínimo sequer diante da vontade de Zeus. Oceano, preocupado com o agravamento dos castigos que o orgulho de Prometeu pode acarretar, exorta-o:
O Oceano – Abafa, ó infeliz, tua cólera impotente; procura alcançar o perdão... Talvez este conselho te pareça de um velho; mas tu sabes que males pode atrair um discurso insolente. Nada te pode humilhar, nada te pode abater... mas tu procuras redobrar teu sofrimento. Crê-me; curva-te sob o jugo: pensa que, atualmente, reina um senhor severo e supremo!
Mas Prometeu não cederá. Apesar de surpreso com a severidade de seu castigo, surpresa que ele mesmo evidenciou na mesma fala em que relatou sua hybris ao coro:
Prometeu – Eu havia previsto tudo... Eu quis cometer o meu crime! Eu o quis, conscientemente, não o nego! Para acudir aos mortais, causei minha própria perdição, mas nunca supus que me veria assim consumido sobre estes rochedos, no cume deserto de montanha inabitável.
Mesmo diante da crueldade de seu injusto castigo o herói mantém-se inabalável, e apesar do aceno de perdão que Oceano lhe assegura conseguir Prometeu permanece firme.
Prometeu – Abandona esses inúteis cuidados; tu não me farás ceder.
Além de seu posicionamento irredutível Prometeu revela, em suas falas, sua nobreza. Vítima de severo castigo ainda se mostra capaz de zelar pela segurança de Oceano, aconselhando-o:
Prometeu – Cuidado! Não te cause esta visita alguma desgraça!...
Oceano, mesmo censurando, reconhece a grandeza de Prometeu:
O Oceano – Sabes aconselhar aos outros bem melhor do que a ti mesmo... Disso estás dando prova...
Prometeu completa, dando mais mostras de sua magnanimidade:
Prometeu – Trata de procurar repouso e abrigo. Se eu sou desgraçado, não quero arrastar comigo a quem quer que seja, ao abismo da desgraça.
O Titã quer sempre preservar seu orgulho, que reflete sua impassibilidade, diante de Zeus, por isso não consente de forma alguma que Oceano interceda por ele junto ao senhor do Olimpo:
Prometeu – Tua sabedoria, Oceano, prescinde de meus conselhos... Deixa-me suportar minha sorte, até que a cólera de Zeus se abrande.
O Oceano – ignoras por acaso, ó Prometeu, que um discurso pode minorar a mais terrível cólera?
Prometeu – Sim, quando se espera o momento oportuno; não se choca violentamente um espírito irritado.
O Oceano – Que perigo vês tu, em que eu deseje e o tente conseguir?
Prometeu – Será esforço inútil, loucura e simplicidade.
O Oceano – Consinto em sofrer desses males... O sábio que se faz de ingênuo, muitas vezes realiza melhor seus propósitos.
Prometeu – Mas essa falsa tentativa me será atribuída.
Por fim o conselheiro Oceano, vendo baldado seus esforços, vai-se embora acatando os conselhos de Prometeu. Contraste interessante que reforça ainda mais força de vontade do herói. Após a saída de Oceano, cuja presença marcou fortemente a irredutibilidade ideológica de Prometeu, o coro volta a falar, e falando a Prometeu fazem, com suas palavras, novo contraste em relação a imobilidade física de Prometeu:
O Coro – Ó Prometeu! Como deploramos teu infeliz destino! De nossos olhos comovidos correm rios de lágrimas...
Prometeu não pode e não quer se mover, mas a sua atitude somada a sua situação, contraditoriamente, produz o movimento no choro das oceânides. E a volta do foco sobre a imutabilidade física de Prometeu se acentuará de forma ainda mais aguda coma entrada em cena de Io. Logo ao entrar em cena, em sua primeira fala, Io indaga e exclama o tempo todo revelando um agitação extrema de espírito contrastando com a serenidade de Prometeu, que neste ponto da peça já se mostrou tranqüilo e seguro, principalmente em seu orgulho de ser o benfeitor da humanidade:
Prometeu – Em suma: todas as artes e conhecimentos que os homens possuem são devidos a Prometeu.
Sua serenidade é confirmada ainda mais em sua próxima fala, mesmo após ter sido engrandecido pelo coro que o quis frontear a Zeus, Prometeu não se entregou a vaidade:
Prometeu – Não!... Não foi assim que dispôs o destino inexorável. Só depois de haver sofrido penas e torturas infinitas é que sairei desta férrea prisão. A inteligência nada pode contra a fatalidade.
A presença de Io em cena é a contraposição mais aguda à imobilidade de Prometeu. A descrição da jovem, na fala de Prometeu em resposta ao coro, comprova:
Prometeu – Sim... ouço a voz da infeliz a quem persegue um inseto cruel: é a filha de Ínaco, por que Zeus está apaixonado, e a quem Juno, ciumenta, obriga a fugir, sem repousa, numa corrida louca, por este mundo afora.
Mas é por causa de Io, no momento em que a ação dramática estabelece a mais aguda contraposição, maximizando a imobilidade da prisão de Prometeu diante da “carreira sem descanso” de Io, que ocorre uma ruptura na imutabilidade ideológica de Prometeu. Io interroga Prometeu acerca do crime do Titã, que se nega a responder, Io tenta saber então sobre qual será o fim de sua carreira dolorosa, mas Prometeu não está disposto a revelar-lhe nada:
Prometeu – Bem melhor será que o ignores, do que conhecê-lo.
Mas Io insiste:
Io – Oh! Não me ocultes coisa alguma do que me resta sofrer!
É bem verdade que esta recusa de Prometeu não está ligada aquela posição firme de não se dobrar à vontade de Zeus, mas é uma característica do Titã. Característica da qual ele abre mão apenas para Io, de quem ele se compadece, com quem ele se identifica. Afinal ambos não são injustiçados pelos deuses? Uma condenada a vagar sem descanso, o outro condenado a ficar para sempre preso a uma rocha. Mas é cedendo à vontade de Io que Prometeu torna a mostrar sua generosidade, mostrava já generosidade em sua recusa querendo poupar a jovem Io de seus sofrimentos vindouros, contudo mostra generosidade também ao atender ao pedido de quem, como ele, tanto sofre:
Prometeu – Visto que tanto empenho mostras, penso que devo satisfazer teu desejo.
É que ambos, Io e Prometeu, com suas condenações discrepantes sofrem de forma igual, Prometeu sabe bem disso, e após a intervenção do coro declara:
Prometeu – É sempre um conforto revelar nossas dores àqueles que nos ouvem condoídos, e nos comovem com suas lágrimas.
E é imbuído desse mesmo espírito de benevolência e generosidade que Prometeu cederá novamente, agora ao desejo do coro de conhecer o nome de seu libertador e ao de Io, de saber o restante de seus sofrimentos. O herói havia anunciado, a Io, resoluto:
Prometeu – Escolhe, pois: ou sabes o que te resta sofrer ainda, ou o nome de meu libertador.
Porém, coma intervenção do coro capitula:
Prometeu – Vós assim exigis, e eu nada vos posso negar!
Então Prometeu passa a contar todas as desventuras futuras de Io e ao fim de sua predição se dispõe a esclarecer todas as dúvidas da jovem, faz isso aludindo a sua situação de imobilidade após a narração da peregrinação incessante de Io:
Prometeu – Faze tuas perguntas, porque posso tudo esclarecer, para isso, bem contra minha vontade, tenho tempo de sobra.
No mais, Ésquilo, além de contrapor fortemente, à narração das peregrinações de Io, à situação desta com a de Prometeu, certamente para acentuar a úlitma, utilizou a presença da jovem em cena para que o espectador vislumbrasse o segredo que Prometeu possui como única arma contra Zeus. Indagado a respeito da natureza, divina ou mortal, da esposa com a qual Zeus gerará o filho que haveria de lhe tomar o trono, Prometeu responde:
Prometeu – Que te importa saber? A tal respeito guardarei segredo.
E é deste segredo, guardado por Prometeu, que Hermes vem em busca. Ele é o último personagem a entrar em cena, e em sua presença é novamente deslocado o foco da imutabilidade de Prometeu, que se voltará mais uma vez para a face ideológica do herói, e é diante de Hermes que ela se mostrará mais acentuada do que nunca. Hermes é o emissário e filho de Zeus, ele vem renovando as ameaças e prometendo castigos ainda mais terríveis ao herói e pretende arrancar do Titã o segredo do futuro de seu império que Zeus tanto deseja. Mais uma vez, porém, Prometeu não cederá. Após ser insultado por Hermes, que em nome de Zeus exige a revelação do segredo Prometeu responde:
Prometeu – Pensas porventura que me acovarde, e que me submeta a esses novos deuses? Longe disto estou, Hermes! Podes ir-te embora! Volta sem tardança ao lugar de onde vieste: nada mais saberás por mim.
É diante de Hermes, representante direto de Zeus, que Prometeu revela todo seu orgulho e irredutibilidade diante de toda injustiça e tirania. E o próprio Hermes é obrigado, logo de início, a reconhecer a obstinação do herói:
Hermes – Eis o invencível orgulho que tantas desgraças já te causou!
Hermes então muda de tática, tenta obter algo espezinhando e ironizando Prometeu e seu sofrimento. Ao ser afrontado pelo herói que lhe diz preferir o sofrimento por que passa em lugar de sua escravidão a Zeus Hermes responde:
Hermes – Sem dúvida, estás, presentemente, numa situação deliciosa!
E quando o herói Prometeu diz odiar o deuses todos, a quem ajudou, e de quem recebe apenas ingratidão e injustiça Hermes responde:
Hermes – Tens a razão conturbada, bem se vê; o mal é violento...
Prometeu revolta-se, e na sua revolta revela mais uma vez sua impassibilidade:
Prometeu – Enganas-te! E a prova é que nada te revelarei, vil escravo!
Hermes então apela ainda, e sua pergunta soa como uma súplica:
Hermes – Nada dirás, então, do que meu pai te ordena?
É agora a vez de Prometeu ironizar de deixar Hermes desconcertado:
Prometeu – Devo-lhe tantos benefícios, que, como vês, tenho obrigação de retribuir!...
Hermes – Prometeu, tu zombas de mim, e tratas-me como a uma criança!
Na resposta do herói Prometeu é reforçada sua obstinação e revelado o elo de ligação entre sua imutabilidade física e ideológica:
Prometeu – Por acaso não é uma infantilidade o pretenderes arrancar de mim uma revelação? Não há tormentos nem artifícios que me forcem a elucidar esse mistério a Zeus enquanto não forem rompidas as correntes que me prendem!
Indagado a respeito de sua obstinação o herói reforça:
Prometeu – Tudo já está por mim previsto: há muito tempo que esta minha resolução está tomada!
Mas Hermes insiste, e mais uma vez anuncia o aumento do castigo, das penas de Prometeu exortando-o a abrir mão de sua irredutibilidade que ele denomina teimosia, no entanto quem se pronúncia é o coro. Este que durante toda peça esteve ao lado do herói, agora acha razoáveis as exigências de Hermes e lhe aconselha uma capitulação:
O Coro – Hermes quer que abandones esse orgulho e adotes uma decisão sensata, ó Prometeu. O que ele diz, afigura-se-nos razoável... Crê! Para o sábio é uma vergonha perseverar no erro cometido.
Prometeu, no entanto mantém-se firme. Sua capacidade de saber o futuro já lhe dera o conhecimento de tudo o que viria a sofrer, assim ele anuncia já saber de seu destino. Anuncia também que haja o que houver; cataclismos terríveis ou tempestades violentas, ele permanecerá firme. Imutável.
Prometeu – Eu já sabia tudo, tudo, o que ele acaba de me anunciar!... Faça ele o que fizer!... eu hei de viver!
É que Ésquilo construiu o personagem Prometeu para resistir a toda tirania, castigos e injustiças divinas, e ao final da peça o herói não poderia se trair. Manteve-se como se portou por toda a obra, irredutível diante de todos e principalmente diante de si mesmo.
CAPÍTULO IV – CONSIDERAÇÕES FINAIS
Segundo Pallottini, (1989) o autor, ao criar um personagem o faz dando-lhe características que lhe serão necessárias para a sua “existência”. Prometeu era um personagem fiel apenas a si mesmo e arredio diante dos outros personagens, e foi usando exatamente os outros personagens que Ésquilo caracterizou o herói, fazendo-o interagir com eles, falando e ouvindo, influenciando e sendo influenciado. Porque no teatro, o diálogo entre os personagens é o que dá vida a peça, e nessa troca a caracterização do personagem principal se deu principalmente por meio do contraste com os seus interlocutores, que se viam, ora admirados com a irredutibilidade de Prometeu, ora impotentes de demovê-lo de sua posição ideológica de não se submeter à vontade de Zeus.
Como bem disse Junito Brandão, (1985, p. 19) “em Ésquilo as personagens existem em função da fábula”. Então se o tragediógrafo grego quis encenar o drama de Prometeu e escolheu colocá-lo em cena acorrentado era mister que suas caracterizações e os diálogos em torno dele ressaltassem sua situação dramática. Os exemplos apontados no capítulo anterior atestam que além de estar, Prometeu, agrilhoado a rocha de uma alta montanha, situação que era constantemente ressaltada a partir dos contrastes característicos ou dialógicos introduzidos pelos outros personagens, estava também preso, fiel a sua própria ideologia de insubordinação a Zeus, posição que se anunciou por toda a peça por meio das falas do herói e pelas falas de seus interlocutores.
Vimos então que a ação da peça não se desenvolve a partir de acontecimentos, mas ocorre, segundo Kitto (1972), em um movimento de intensificação dramática que se verifica dentro do espírito do herói Prometeu, é que, ainda segundo Kitto, Ésquilo dramatizou em Prometeu Acorrentado as emoções, e não os acontecimentos, onde a situação do herói é a maior representação da peça, não no que ele faz, mas no que ele sente e no que ele é. As revelações tomam lugar da ação e do movimento, e são as revelações dos personagens, a narração do drama de Io, a comiseração do coro e de Hefestos, a truculência de Poder, a possibilidade de perdão que Oceano oferece ao herói e o anúncio de Hermes, diante da última prova de insubordinação do herói, do agravamento da penas de Prometeu, que fundamentam e caracterizam a tensão crescente de uma situação que não se move durante toda a peça.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRANDÃO, Junito de Souza. Teatro grego: tragédia e comédia. São Paulo: Vozes, 1985.
COSTA, Lígia Militz da. A poética de Aristóteles: mímese e verossimilhança. São Paulo: Ática, 1992
KITTO, H. D. F. A tragédia grega. Coimbra: Armênio Armado Editor, 1972.
LESKY, Albin. História da literatura grega. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1995.
PALLOTTINI, Renata. Dramaturgia: a construção do personagem. São Paulo: Ática 1989.
PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro. São Paulo: Perspectiva, 1999.
VERNANT, Jean-Pierre. Mito e pensamento entre os gregos. Rio de Janeiro: Paz e Terra 2002.
VERNANT, Jean-Pierre. Mito e tragédia na Grécia antiga. São Paulo, Brasiliense, 1991.
[1] Jean-Pierre Vernant em Mito e Tragédia na Grécia Antiga, 1991, p. 120 afirma que na obra de Ésquilo existem dois tipos de escravos: por destinação e por captura.
[2] Conselho de membros da aristocracia Ateniense.
[3] Assembléia de cidadãos encarregados de deliberar sobre assuntos da cidade.
[4] Cidadão responsável pelas apresentações teatrais em Atenas.
muito bom
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