domingo, 20 de dezembro de 2009

O temor da Guerra Fria em O planeta dos macacos

O filme em questão, por meio de sua metáfora ficcional, apresenta-se como uma crítica aguda à corrida armamentista que dominou praticamente toda a segunda metade do século XX, e que colocou o planeta a poucos passos de uma hecatombe nuclear global. Os principais agentes desta corrida foram a extinta União Soviética e os Estados Unidos. Mas o filme não aborda literalmente este momento de tensão bipolar que quase nos levou a destruição completa, ele aborda na verdade um hipotético momento futuro após um holocausto atômico, que a realidade tornara extremamente possível e real. Neste ponto precisamos abrir parênteses: dissemos acima que O planeta dos macacos faz uma crítica à corrida armamentista, no entanto temos plena consciência de que a obra traz, além disso, em seu conjunto uma grande variedade de metáforas criticando diversos aspectos do comportamento humano da época em que foi produzido e por que não de todos os tempos? Mas se vamos abordar neste artigo apenas uma de suas vertentes críticas, aquela dirigida contra a ameaça nuclear que o mundo sofreu, é devido ao caráter extremamente breve deste trabalho.
O nosso recorte tem uma razão, ele foi feito para acompanhar o direcionamento que os próprios produtores do filme estabeleceram quando adaptaram o romance La planète des singes do escritor francês Pierre Boulle para o cinema. A história do livro conta sobre uma equipe de exploradores que sai da Terra e encontra, orbitando a distante estrela Betelgeuse, um estranho planeta onde uma civilização composta de chimpanzés, orangotangos e gorilas dispõe, para pesquisas científicas ou como animais de estimação, de uma raça primitiva de seres humanos. Este enredo na verdade é o mesmo do filme de Franklin J. Schaffner, o que vai diferenciar a versão cinematográfica da literária é o desfecho apresentado. Nas últimas páginas do livro o leitor descobre que naquele planeta o homem outrora fora a raça dominante, época na qual cabiam aos macacos os papéis que no momento da narrativa os humanos desempenhavam, depois desta revelação descobre-se que aquela humanidade perdeu sua posição devido a um lento, porém contínuo, processo de indolência e estagnação que a levou inevitavelmente a ser subjugada pela população símia local. No filme este processo ainda é semelhante, porém sua causa difere, foi desencadeado por uma devastação extrema provocada por sua vez por uma guerra nuclear, somando-se a isso o dado mais alarmante é a descoberta de que aquele estranho planeta é na verdade a Terra, fato revelado quando o personagem Taylor depara-se com as ruínas semi-soterradas da Estátua da Liberdade, uma das cenas de maior impacto de toda a história do cinema. Enfim, é a esta diferença que se deve nosso recorte.
Assim como a cena final, o filme tem muitas outras impactantes, tais como humanos sendo caçados como animais selvagens pelos macacos e aprisionados em jaulas. Mas deixaremos as cenas de lado, mostraremos neste artigo a tensão da Guerra Fria transposta da realidade para a película por meio de algumas das frases de maior impacto do filme. Para isso destacamos onze frases, das quais nove são proferidas pelo personagem Taylor, interpretado pelo famoso ator Charlton Heston, que já havia trabalhado em grandes filmes de Hollywood tais como O senhor da guerra, Os dez mandamentos e Ben-Hur, com este último inclusive, ganhara o Oscar de melhor ator. A posição que Heston ocupava em Hollywood e por extensão na memória dos espectadores de cinema explica sua escolha como protagonista aumentado a empatia com o público ao ouvi-lo proferindo suas falas que expressavam esperança, angústia, dúvida, resignação, otimismo e tristeza. Neste ponto em que ressaltamos a importância da escolha do ator para desempenhar o papel principal do filme levamos em conta que para

Desvelar o processo de construção fílmica implica uma complexa análise de dados que vão desde a produção industrial do filme – em toda aquela série de dados cinematográficos essenciais para subsidiar a compreensão dos conteúdos latentes do filme -, até a compreensão de como a história (isto é, os dados históricos, com todo o seu rol de significações) é construída no interior da narrativa fílmica. (SALIBA, 1993, p. 95).

As outras duas frases, das escolhidas, que não foram proferidas pelo personagem Taylor o são pelo personagem Dr. Zaius, interpretado pelo ator Maurice Evans. Dr. Zaius é um orangotango, o Ministro da Ciência e Defensor da Fé, o antagonista de Taylor, que o ironiza apontando a contradição entre suas ocupações. De nossa parte vamos mostrar a contradição do antagonismo entre Taylor e Dr. Zaius, é que ambos os personagens são duas faces da mesma moeda. Parece-nos que na ficção científica a humanidade não deve ser vista apenas nos personagens humanos, ela deve ser enxergada com seus aspectos bons ou maus nos personagens estranhos e diferentes, no nosso caso Dr. Zaius, representante do dogmatismo, repressor que, exatamente por causa dessas características teme o desconhecido e procura com seus atos proteger-se dele. Taylor, devido à situação em que se vê aprisionado por uma civilização estranha, coloca ao lado de seu sarcasmo uma busca desesperada por uma resposta para sua condição. Como dissemos, duas faces da mesma moeda, o medo e o fascínio pelo desconhecido presente em todos nós diluído e divido entre Taylor e Dr. Zaius. Mas para ilustrar o que foi dito o melhor é fazer o que propomos: usar as falas para confirmar as características dos personagens principais e demonstrar como através delas transparece a preocupação e o medo da catástrofe nuclear que ameaçava a humanidade.
Ainda dentro da nave espacial o personagem Taylor, solitário enquanto os demais tripulantes estão imersos em um sono profundo dentro de câmaras individuais, profere três frases:
Taylor - Você que me ouve agora, é de uma geração diferente, espero que de uma melhor.

Taylor - Sinto-me sozinho.

Taylor - Será que o homem, esta maravilha do universo, este glorioso paradoxo que me mandou às estrelas ainda faz guerra com os irmãos?

Taylor, no momento em que profere as frases citadas acima, está fazendo uma espécie de relatório, não para aqueles que o enviaram na atual missão, pois a temporalidade do filme é dinamizada com o auxílio da Teoria da Relatividade de Einstein, segundo a qual o tempo passa mais lento para quem viaja em velocidades próximas a da luz, no caso Taylor e os demais tripulantes da nave, e transcorre normalmente para quem permanece parado na Terra, no caso aqueles que enviaram Taylor e os outros em sua viajem. Pelas contas do computador a viajem durara até então alguns meses enquanto que pelo tempo da terra ele estaria no espaço já a centenas de anos, de maneira que aqueles homens que o enviaram na missão já haviam desaparecido. Portanto o relatório gravado por Taylor fatalmente seria destinado à outra geração. E é nessa geração que Taylor deposita suas esperanças, pois em sua frase está a pressuposição de que a geração da Terra que ele deixou quando se lançou em sua viajem não era a ideal. Nesse ponto a crítica à sociedade da época em que o filme foi produzido fica evidente e clara, pois na década de sessenta Estados Unidos e União Soviética estavam envolvidos na corrida espacial e a viajem do astronauta Taylor recria exatamente a mesma situação, o que direciona ainda mais crítica para a disputa entre esses dois países que polarizavam a Guerra Fria.
A segunda frase citada é mais introspectiva, Taylor está arrebatado pela imensidão do espaço e a sensação de solidão o oprime. Essa situação deve ser enxergada como uma metáfora onde a imensidade do espaço significa na verdade a imensidão profunda do interior humano onde cada um mergulha em busca de resposta para sua existência, onde cada um percebe que dentro de si se está sempre só. Está atitude introspectiva é sempre buscada nos momentos de crise pessoal e social, foi o que aconteceu durante a Guerra Fria, quando pairava a ameaça nuclear, tanto a existência social quanto pessoal estavam em perigo e diante disso o indivíduo se via impotente. Nessa situação a angústia era muito grande, e como o ser humano nem sempre é capaz de dividir seus medos se sentimentos com seus semelhantes sua angústia é multiplicada na solidão em que ele ao mesmo tempo se vê e se coloca.
Na terceira frase é expressa a ironia da situação do homem, capaz ou mesmo tempo de maravilhas e de misérias. Há nela também um apelo para que se enxergue a humanidade de uma maneira universal, isso fica claro com a escolha da palavra irmãos, que chama a atenção para o fato de que todos fazem parte de uma mesma “família”, o que dá ainda mais força à idéia de igualdade unindo a ela a idéia de fraternidade. Há também o desafio à humanidade, pois o ainda revela a idéia de atraso atribuído à guerra, para que ela melhore, evolua em direção a um estágio superior.
A seqüência seguinte do filme mostra a queda da nave de Taylor em um planeta desconhecido, a cena marca um deslocamento do tom de esperança presente nas frases que analisamos acima para uma atitude de resignação que apesar disso encerra uma responsabilidade, uma necessidade de melhora que nesse sentido busca ainda manter a esperança na humanidade, vejamos:

Taylor - Ok, estamos aqui para ficar.

Taylor - Só há uma realidade, nós estamos aqui e agora, você aceite isso ou é melhor estar morto.

A primeira frase citada foi dita por Taylor enquanto ele e seus companheiros viam sua nave afundar levando consigo a esperança de retorno para o mundo de onde vieram. Essa situação assinala o paradoxo temporal e espacial do filme, pois o estranho planeta em que caíram, embora ainda não saibam, é a Terra em uma época diferente. E quando Taylor deixa claro, diante a impossibilidade de retorno, que deveriam ali ficar, ele traz em suas palavras uma idéia de queda, de rebaixamento do ideal para o real. O ideal que está presente na imaginação de todos nós na forma da esperança dá lugar bruscamente à fria realidade da qual se busca fugir e se defender, mas a qual todos, ao mesmo tempo, devem aceitar resignadamente. Mas se a realidade é para ser aceita não é simplesmente para ser mantida, nesse sentido a frase de Taylor também impõe a necessidade de melhorar o mundo em que fatalmente estamos condicionados a viver. A segunda frase reforça ainda o que foi dito acima, e o faz melhor quando nela é oferecida a opção sinistra da morte em lugar da aceitação da realidade. As duas frases calham bem com a argumentação que propomos, pois esse chamado para a realidade em detrimento do ideal significa, na vida real, que a humanidade deveria enxergar de fato a situação em que estava e, enxergando-a, tomar consciência da emergência de mudar a perigosa situação em que se encontravam.
A próxima frase que escolhemos aponta para a descrença no ser humano, para sua fraqueza e para o absurdo de sua possível existência exclusiva no universo:

Taylor- Eu acredito que em algum lugar do universo haja alguém melhor que o homem, tem que haver.

A frase demonstra agora a total desilusão de Taylor para com o gênero humano, entretanto ele, de certa forma, ainda tem esperança de encontrar algo melhor, mas o homem já está descartado de suas expectativas. Esse posicionamento quase místico de Taylor também aponta para a realidade, exatamente para a realidade de um mundo em crise, onde as possibilidades materiais se esgotam e o homem apela para a busca do desconhecido que seria capaz de salvar e de redimir os erros humanos. Mas esse momento não passa de um arroubo que logo se dissipa, sentimos isso nas próximas palavras destacadas de Taylor:

Taylor - Veja pelo lado bom, se isto é o melhor que eles têm por aqui, em seis meses estaremos governando o planeta.

Isso é dito por Taylor aos seus companheiros quando se deparam com um grupo de humanos primitivos do estranho planeta. A atitude que emerge de seu discurso nesse momento é de pura arrogância, que pode ser comparada a dos europeus frente aos nativos da América ou da África, mas além dessa possibilidade desponta também a ânsia de poder presente em cada ser humano, e por extensão em cada nação, sobretudo naquelas em conflito. Ânsia de poder e de domínio sobre o inimigo que a despeito disso é igual. E é baseado nessa igualdade que a cena seguinte terá maior impacto: de repente os humanos selvagens pressentem perigo no ar, ouvem um grito aterrorizante na selva e se põem a fugir enlouquecidos, Taylor e seus companheiros estupefatos a princípio não sabem que atitude tomar, mas por fim acabam, sem saber por que, seguindo os selvagens, integrando-se naquele rebanho amedrontado. Em seguida se vêem caçados e capturados em meio aos outros por uma estranha espécie evoluída de gorilas. Da ironia dessa seqüência emerge uma crítica aguda à humanidade: ela força a reconhecer que apesar das diferenças todos os seres humanos são iguais, parte de um mesmo rebanho unido pelo destino comum na luta pela sobrevivência. E acentuando ainda mais a crítica há a presença dos gorilas perseguindo os humanos. Repetindo o que já foi dito acima: na ficção científica a humanidade não deve ser enxergada somente nos humanos, ela deve ser apreendida, com seus aspectos bons ou maus nos personagens estranhos e diferentes, neste caso os gorilas caçadores que surgem como metáfora para os que usam de uma maior força que possuem e de tecnologias mais avançadas para dominar ou exterminar outros grupos humanos mais fracos.
Já cativo, Taylor, encerrado em uma jaula como um animal, demonstra, com um acento agudo de humanismo, seu pessimismo e desilusão.

Taylor – Na Terra faz-se muito amor, mas não há amor, esse é o tipo de mundo que nós criamos.

Esta fala, ao expressar o reconhecimento do personagem em relação à falsidade das relações humanas, procura, ao escancarar a situação descrita, reformá-la, reformar o mundo onde na realidade o amor não existe, e que, por isso mesmo necessita muito do amor. No mundo ameaçado pela guerra é um apelo a este sentimento que nega todo mal, identificado com a guerra, presente no ser humano.
As próximas frases que colocaremos nessa discussão fazem parte fazem parte do diálogo final entre Taylor e o orangotango Dr. Zaius. Como já dissemos, de certa maneira, estes dois personagens se completam, então a conversa entre eles emerge como uma indagação interna da alma humana em busca de uma resposta que é ao mesmo tempo pessoal e universal.

Zaius – Se o homem era superior, por que ele não sobreviveu?

Taylor – Isso ainda não responde por que neste planeta o macaco evoluiu do homem. Deve haver uma resposta.

Zaius – Não procure Taylor, você pode não gostar do que vai encontrar.

A primeira frase colocada acima, traduzida para a realidade da Guerra Fria deveria ser algo como: O homem, o ser superior na Terra sobreviverá à ameaça de destruição total criada por ele mesmo? No filme o homem não foi capaz, e a indagação do Dr. Zaius feita a Taylor traduz a angústia da humanidade enquanto pairou a ameaça nuclear. A segunda frase citada acima ilustra a arrogância humana e sua dificuldade de aceitar que não é um ser exclusivo, que ao invés disso simplesmente faz parte da natureza do planeta. Para Taylor soa absurdo que, no estranho planeta, o macaco tenha evoluído do homem sem que haja um motivo especial para isso. A resposta de Dr. Zaius não resolve a questão, Taylor ainda vai buscar a resposta definitiva, mas a expressão em seu rosto é significativa, porém antes que tentemos entendê-la cabe aqui a palavra de Ferro:

A idéia de que um gesto poderia ser uma frase, ou um olhar um longo discurso é completamente insuportável: isso não significa que a imagem, as imagens sonoras, o grito dessa mocinha ou essa multidão amedrontada constituem a matéria de uma outra história que não é a História, uma contra-análise da sociedade? (FERRO, 1992, p. 86)

A expressão no rosto, no olhar de Taylor é de fato o longo discurso de que trata Ferro. Dr. Zaius o advertira para que não procurasse respostas, pois elas possivelmente lhe desagradariam, Taylor sabia que era verdade, é essa certeza, é esse discurso que está presente em seu olhar. Taylor é um homem, conhece o homem e sabe de todas as tendências destrutivas do homem, é um discurso de reconhecimento e medo de se reconhecer e se encontrar que emerge do olhar apreensivo de Taylor. Afinal o que ele encontra na última cena do filme é a confirmação de todas as acusações de Dr. Zaius sobre a beligerância humana, ao ver a Estátua da Liberdade meio soterrada Taylor se dá conta que está na Terra, uma Terra totalmente devastada que não lhe deixa dúvidas sobre o que aconteceu, pois ele sabia qual era a ameaça que pesava sobre ela estava antes de sua viajem. A força dessa cena e do filme reside no fato de que o que ocorrera na ficção ainda estava sob risco de acontecer na vida real, o que dava um tom sinistro a velha frase: a vida imita a arte.

FERRO, Marc. Cinema e História. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1992.
ROSSATTI, Renato. O planeta dos macacos: uma mensagem para a humanidade. Disponível em: http://www.bocadoinferno.com/romepeige/artigos/macacos.html. Acesso em 15/12/2009.
SALIBA, Elias Thomé. Coletânea lições de cinema. São Paulo, 1993.

terça-feira, 11 de agosto de 2009

Dicas de leitura do blog



Já ouvi dizer que não se deve ousar escrever um livro antes de ter lido outros mil. Como ainda não cheguei a essa marca me reservo a publicar nesse blog. Pensando nisso resolvi publicar aqui minha lista de preferidos para mostrar que ao menos como leitor vou caminhando...



Quem se interessar por algum destes entre em contato, ficarei feliz em dar mais detalhes, ou até minha opinião.



aleks_1979@hotmail.com





A ponte do rio Kwai – Pierre boulle


Guerra dos mundos - H. G. Wells
O caçador de andróides - Philip K. Dick
Um estranho numa terra estranha - Robert A. Heinlein
Parasitas da mente - Colin Wilson
Os invasores de corpos - Jack Finney
Um cântico para Leibowitz - Walter M. Miller Jr.
Solaris - Stanislaw Lem
O incrível congresso de futurologia - Stanislaw Lem
A ameaça da terra - Roberta A. Heinlein
Vampiros do Espaço - Colin Wilson
Adimirável mundo novo - Aldous Huxley
O planeta do macacos - Pierre Boulle
Revolta em 2100 - Robert A. Heinlein
2001: uma odisséia no espaço - Arthur C. Clark
1984 - George Orwell
A revolução dos bichos - George Orwell
Regresso ao admirável mundo novo - Aldous Huxley
A ilha - Aldous Huxley
As portas da percepção - Aldous Huxley
Biografia de Carl Gustav Jung - Colin Wilson
Assim falou Zaratustra - Nietzsche
O Anticristo - Nietzsche
O Nascimento da tragédia - Nietzsche
Para além do bem e do mal - Nietzsche
Genealogia da moral - Nietzsche
Crepúsculo do ídolos - Nietzsche
A gaia ciência - Nietzsche
Humano demasiado humano - Nietzsche
Aurora - Nietzsche
O contrato social - Jean-Jacques Rousseau
Origem da desigualdade entre os homens - Jean-Jacques Rousseau
O príncipe - Maquiavel
A arte da guerra - Maquiavel
A vida dos doze Césares - Suetônio
J'accuse! Émile Zola e o Caso Dreyfus
A romana - Alberto Moravia
On the road/Pé na estrada - Jack Kerouac
Vagabundo iluminados - Jack Kerouac
O lobo da estepe - Hermann Hesse
Três histórias de aventuras - Jack London
A metamorfose - Franz Kafka
Lolita - Vladmir Nabokov
O machão - Harold Robbins
O contador de histórias - Harold Robbins
79 park avenue - Harold Robbins
Stiletto - Harold Robbins
Os insaciáveis - Harold Robbins
Os sertões - Euclides da cunha
Inocência - Visconde de Taunay
Anna Karenina - Leon Tolstoi
A confissão de um filho do século - Alfred de Musset
Werther - Goethe
Eugênia Grandet - Balzac
O coronel Chabert - Balzac
A dama das Camélias - Alexandre Dumas Filho


Os três mosqueteiros - Alexandre Dumas
O conde de Monte Cristo - Alexandre Dumas
O retrato de Dorian Gray - Oscar Wilde
O vermelho e o negro - Stendhal
O morro dos ventos uivantes - Émille Brönte
Novelas exemplares - Miguel de Cervantes
Biografia de Orson Welles
A gente não brinca com amor, e outras peças - Alfred de Musset
O santo inquérito - dias Gomes
O pagador de promessas - Dias Gomes
Prometeu acorrentado - Ésquilo
Os persas - Ésquilo
Fausto - Goethe
Um bonde chamado desejo - Tenesse Williams
A morte do caixeiro viajante - Arthur Miller
Contos e crônicas - Nelson Rodrigues
Os sete gatinhos - Nelson Rodrigues
Álbum de família - Nelson Rodrigues
Boca de ouro - Nelson Rodrigues
Perdoa-me por me traíres - Nelson Rodrigues
Beijo no asfalto - Nelson Rodrigues
A mulher sem pecado - Nelson Rodrigues
Vestido de noiva - Nelson Rodrigues
Valsa n 6 - Nelson Rodrigues
Viúva, porém honesta - Nelson Rodrigues
Anti-Nelson Rodrigues - Nelson Rodrigues
Núpcias de fogo - Nelson Rodrigues
O rei da vela - Oswald de Andrade
Guilherme Tell - Friedrich Schiller
Macário - Álvares de Azevedo
O Conde Lopo - Álvares de Azevedo
Lira dos vinte anos - Álvares de Azevedo
Abajur lilás - Plínio Marcos
Oração para um pé-de-chinelo - Plínio Marcos
Navalha na carne - Plínio Marcos
Dois perdidos numa noite suja - Plínio Marcos
Quando as máquinas param - Plínio Marcos
Marília de Dirceu - Toás Antonia Gonzaga
Poesias - Castro Alves
Poesias - Fagundes Varela
Poesias - Casimiro de Abreu
Poesias - Laurindo Rabelo
Poesias - Junqueira Freire

sábado, 25 de julho de 2009


O Feudalismo em O senhor da guerra




Por feudalismo podemos entender, de forma geral, a organização social, econômica, política, cultural e religiosa da Europa ocidental principalmente entre os séculos XI e XIII. No feudalismo a sociedade era extremamente estratificada, um de seus traços marcantes é a idéia da sociedade tripartida composta por oratores, belatores e laboratores - os que rezam, os que lutam, e os que trabalham, respectivamente. Dentro da camada dos belatores ocorriam as relações feudo-vassálicas, que eram contratos com regras previstas entre um suserano e seu vassalo em torno, principalmente, de terras. O dono da terra, proprietário ou senhor feudal, proveniente da camada belatores, controlava os laboratores, que tinham alguns direitos e muitos deveres para trabalhar e viver nas terras do senhor. Aos oratores cabia a intermediação dos homens, fossem eles senhores ou servos, com o deus cristão que via a todos como iguais e ignorava as divisões terrenas. A economia do período estava centrada nos feudos que eram propriedades auto-suficientes, que somente se relacionavam comercialmente quando havia excedentes de produção, nesses momentos ocorriam trocas, pois a economia monetária recuara muito desde a antiguidade. Nesse período o poder estava extremamente fragmentado fazendo com que aristocracias locais tomassem as prerrogativas do poder do estado, nesse cenário o senhor de terras gozava de poderes quase reais. O rei era distinguido, além de ser o maior proprietário, como primus inter pares, o primeiro entre os iguais. Em relação à cultura as principais características foram: a passagem do paganismo para o cristianismo, a tendência para as crenças supranaturais, a belicosidade e os relacionamentos baseados na contratualidade.


Dentro do tema do feudalismo o filme O senhor da guerra mostra-se fiel ao contexto da Idade Média Central, tamanha é a riqueza de referências às situações que predominavam na época, a começar pelo título. Da palavra senhor, podemos depreender dois significados comprobatórios, ambos eminentemente feudais. O primeiro remete imediatamente a um degrau superior da longa escadaria das relações feudo-vassálicas. Pelo título de senhor era obrigatoriamente tratado, pelo vassalo, aquele que a este concedia um feudo. Chrysagon, o protagonista da história, é tratado como senhor pelos seus, isso ocorre provavelmente porque esses guerreiros que o acompanham deviam ter para com ele laços de vassalagem, veremos mais a frente qual poderia ser a natureza desses laços. Por hora seria interessante destacar que o próprio Chrysagon é vassalo do Duque que, lhe concedeu um feudo, onde se desenrolará as aventuras do filme, portanto o Duque é, por sua vez, o senhor de Chrysagon, isso indica que a complexidade das relações de suserania e vassalagem se desenrolavam tanto para cima como para baixo na convivência intracamadas da faixa bellatores do ideal da sociedade tripartida. Outro significado para senhor pode ser subtraído da relação com a guerra, aponta para o caráter bélico do protagonista, quer demonstrá-lo como um guerreiro maior, experimentado e dominador das artes militares, isso nos leva, finalmente, para a palavra guerra presente no título. A guerra, segundo estudos, era uma atividade sempre presente durante a Idade Média Central. Invasões de povos nórdicos, pilhagens de feudos, seqüestros dos senhores com vistas ao seu resgate, senão freqüentes eram situações comuns do período. Certamente não eram tão destruidoras como as guerras de conquistas da antiguidade, mas demandavam a manutenção constante do aparato militar de cada feudo.


Chrysagon, seu irmão Draco, os guerreiros que o acompanham, assim como o Duque que lhe concedeu o feudo para qual se dirigem são normandos. Os normandos eram escandinavos que no século X instalaram-se na região norte da atual França. A partir do século XI eles já estavam cristianizados e, como bem podemos ver no filme, integrados nas práticas do feudalismo. É como senhor feudal que Chrysagon é enviado pelo Duque para a região costeira da Normandia, onde se localizavam as terras que este lhe concedeu. A região era pantanosa, e os guerreiros de Chrysagon alegaram que este merecia terras melhores. O que emerge dessa situação é que, provavelmente, o Duque não enviou seu grande guerreiro para cuidar de terras ou administrar um feudo, é certo que ele o escolheu, o veterano de vinte anos de batalhas, para defender a região das incursões de pilhagem Frísias que devastavam a costa da Normandia, o controle militar das regiões fronteiriças era primordial. É justamente com uma dessas incursões que Chrysagon se depara chegando ao seu feudo, ao ponto de ter tempo de tomar parte na batalha para repelir os saqueadores frisões.


Desta luta inicial podemos destacar o estilo de combate a cavalo, as armas, as armaduras constituídas com malhas de aço. Além disso, é importante notar que Chrysagon é o único que veio tomar posse de terras, dentre todos é o único senhor feudal, mas os demais guerreiros lutam ao seu lado, a ele obedecem como senhor, mas não são seus servos, certamente são seus vassalos e provavelmente recebem dele, para combater, determinado pagamento, isso nos lembra que, no feudalismo, terras não consistiam na única forma de benefício aos vassalos, havia diversas outras formas, dentre as quais destacaríamos para a situação um tipo de feudo de bolsa, perante o qual o vassalo ficava obrigado a prestar serviços militares ao suserano em troca de um pagamento em dinheiro. Ao fim da batalha uma cena emblemática, diante dos habitantes do feudo, provavelmente remanescentes dos povos celtas, montado a cavalo junto com seus guerreiros, Chrysagon indaga Marc, um dos servos presentes, sobre um machado que ele portava, o jovem responde-lhe que o tomou de um frisão durante a batalha. Imediatamente Chrysagon ordena que Marc lhe entregue a arma. Essa cena ilustra primeiramente a diferença entre servos e senhor, os primeiros aparecem vestidos grosseiramente e mantém uma postura submissa diante do segundo, eles também lutaram contra os frisões, mas suas armas na batalha foram foices e forcados, seus instrumentos de trabalho, afinal servos não têm direito a portar armas, são laboratores. O filme explicita isso no ato em que Chrysagon exige o machado de Marc, o senhor em trajes de batalha e pleno de superioridade montado a cavalo retira das mãos do servo a arma, um instrumento estranho a sua função, salvaguardando assim a ordem na sociedade tripartida. Um exemplo de conflito entre as ordens é uma discussão entre Draco e o padre, este procura demonstrar sua superioridade dizendo que saber ler ao que o guerreiro responde ser a ciência do diabo, esta cena mostra-nos que na época eram os clérigos os detentores do saber, mostra também uma tendência a desvalorizar este saber por parte daqueles que não o possuíam, no caso os bellatores, representados por Draco. Afinal a sociedade tripartida existia, era dividida entre oratores, bellatores e laboratores, mas às vezes o convívio entre esses três grupos se mostrava delicado e problemático. Outro fato do combate, que será importante no desenrolar da história, é a captura de um menino, neste momento os cristão ainda ignoram ser ele o filho do rei frisão que comandou o ataque ao feudo, quem fica com a posse do garoto é Volc, um pajem anão. Ele passa a conduzir a criança junto de si presa por uma coleira, quando os outros dizem para Volc largar o garoto ele rechaça a idéia e responde que enquanto o tiver em seu poder também será um senhor. Tal comportamento por parte de Volc mostra-nos que há nos homens a necessidade de mostrar-se importante de alguma forma, mas isso assim o é em todas as épocas, o caso específico mostra que, durante o feudalismo, era preciso dominar outros homens para que um homem se elevasse, para que fosse enfim um senhor.


Após a batalha apresenta-se a Chrysagon um monge, este elogia o povo local dizendo-lhe que já estavam a se esquecer da religião dos druidas. A presença do monge cristão naquela longínqua região da Normandia ressalta o projeto cristianizador da Igreja sobre a diversidade religiosa dos diversos povos de toda a Europa. Mas ao adentrar na torre que lhe servirá de morada, rústica fortificação, exemplo da arquitetura da época, Chrysagon depara-se com uma cena que demonstra como ali o cristianismo vacilava: nus, mortos sobre uma cama estão o guardião da torre e uma aldeã, esta com uma grinalda de flores não deixa dúvidas, era uma noiva que acabara de se casar, mas não era seu noivo o guardião, este se aproveitara de uma tradição, de um ritual de fertilidade dos aldeões, no qual, na noite de núpcias, a noiva deveria deitar-se com o senhor do lugar e não com seu marido. Numa demonstração de completa indignação Chrysagon condena veementemente o que vê e ordena que seja queimada a cama onde os dois estavam. A situação demonstra que longe sucumbir ao cristianismo, crenças dos povos pagãos eram adotadas por cristãos quando estas lhes eram convenientes. Após se alojarem Chrysagon e seus guerreiros partem para uma caçada, no bosque flagram um servo faminto tentando capturar um javali, o miserável é expulso acusado de roubar, pois o direito da caça, durante o feudalismo, era exclusivo do senhor, outro retrato fiel da obra. Após esta cena ocorre o encontro entre Bronwyn e Chrysagon, a relação entre os dois conduzirá o filme daí para frente. Crescerá entre eles um sentimento que foge aos padrões da época, o amor entre uma jovem pagã e o guerreiro cristão. A princípio o senhor feudal teme atribuindo a atração que sente a poderes mágicos, bruxarias lançadas pela jovem - julgamento fruto da intolerância e preconceito cristão diante das demais religiões. Mas o tempo passa, e a cada encontro o desejo de Chrysagon aumenta ainda mais, o que não passa despercebido de seu irmão Draco, este insiste para que Chrysagon tome Bronwyn para si. Draco sabe que seu irmão sente necessidade do amor de uma mulher, pois em uma discussão que tiveram ouviu-o desabafar dizendo que passara vinte anos vivendo com uma esposa fria - sua espada. Esta mágoa do senhor feudal reforça a informação que temos de que a época do feudalismo era de guerras constantes, que arrastavam consigo a existência dos homens. Essa mesma discussão, assim como outras entre os irmãos revelou também a inveja do irmão mais novo, Draco, em relação ao irmão mais velho, Chrysagon. O primeiro se mostra humilhado diante de todas as honras que o segundo recebia do Duque, mas o mais velho defende-se dizendo que suas honras eram advindas dos anos de batalha e rebate que enquanto lutava o irmão permanecia gozando dos prazeres da corte. Isso exemplifica não só a importância que a sociedade feudal dava ao primogênito, mas também as responsabilidades e ciúmes que tal hábito acarretava. Tudo era tão forte a ponto de destruir a relação fraternal entre os dois, percebemos inclusive que ao incentivar os desejos de Chrysagon para com Bronwyn Draco buscava perdê-lo aos olhos dos seus e do Duque, o que afinal consegue chegando até a receber do suserano o direito das terras que antes fora dado ao irmão, pois lhe relatara o descaminho deste no romance com a jovem pagã.


O desejo de Chrysagon o leva a cometer o mesmo pecado que ele condenara ao chegar ao lugar, acaba também por tomar Bronwyn para si após seu casamento com Marc, fato que reforça a fragilidade do cristianismo diante das paixões humanas e demonstra que ele não dominava totalmente a mentalidade dos homens. O senhor feudal interrompe o casamento dos servos, a cerimônia era pagã, nova prova de que apesar de aceitar, talvez por conveniência, a fé cristã aquele povo preservava sua religião. Reclamando para si o direito da primeira noite Chrysagon leva Bronwyn para o castelo com a promessa de devolvê-la na manhã. Isso não ocorre, surge um amor recíproco e a jovem permanece na torre. Tal ato provoca a união dos servos com os frisões. Os primeiros querem a noiva de volta, os segundos o seu príncipe. A reivindicação dos frisões revela uma prática comum no feudalismo, o seqüestro, a exigência de resgate em troca de pessoas importantes, no caso o jovem príncipe frisão, dessa forma Draco age segundo sua época e também o faz como vingança, pois o rei frisão também seqüestrara seu pai no passado. Um detalhe do conflito que se segue é que o pajem Volc está agora do lado dos servos, decerto cansado dos maus-tratos sofridos entre os guerreiros, o que ressalta a brutalidade e covardia desses homens. A união entre os servos e aqueles que os saqueavam, os frisões, aponta para a tendência, durante o feudalismo, de formação de alianças segundos as necessidades do momento, neste caso para combater um inimigo mais forte. Outro retrato do feudalismo são as técnicas de batalha para o assalto da torre assim como as para sua defesa. A consciência do perigo que os cristãos corriam faz Draco ir buscar a ajuda do Duque, outra mostra das tradições feudais, o senhor deveria sempre dar ajuda e proteção militar a seus vassalos, e é com a ajuda dele que Draco consegue levar os seus à vitória final.


Finalmente como a relação de Chrysagon e Bronwyn fugia aos padrões da época ela foi a ruína de ambos, a jovem foi banida de seu povo, o guerreiro perdeu seu benefício junto ao Duque, este desfecho exemplifica que no feudalismo o comportamento dos homens era regulado por um linha estreita que não deveria ser ultrapassada, pois além dos grandes prejuízos que tal atitude acarretava ao infrator havia um perigo ainda mais grave – o risco de abalar a ordem feudal, cuidadosamente construída por meio da complexidade das relações feudo-vassálicas e pela presença talvez não absoluta, mas marcante religião cristã.



O senhor da guerra/The war lord


Direção: Franklin Schaffner


Elenco: Charlton Heston, Richard Boone, Rosemary Forsyth, Maurice Evans...


Ano: 1965


País: Estados Unidos


Duração: 122 minutos








quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

PROMETEU ACORRENTADO - IMUTABILIDADE FÍSICA E IDEOLÓGICA


INTRODUÇÃO

O estudo de Prometeu Acorrentado justifica-se nesta pesquisa devido ao meu grande interesse pelo personagem central da peça. O personagem de Ésquilo desperta grande atenção por sua coragem, altruísmo, orgulho, e, sobretudo por ser um exemplo de insubordinação contra poderes e autoridades arbitrárias e tirânicas. A sua atitude impressiona ainda mais pelo fato de ser conhecedor do caráter terrível de seu castigo e, mesmo assim, seguir em frente em seu intento de beneficiar os seres humanos.
Outro fato que move meu interesse por Prometeu é ele ser um exemplo de herói magnânimo, honesto e fiel aos seus princípios, características que lhe impossibilitam curvar-se à vontade dos deuses poderosos. Prometeu, como é apresentado na peça de Ésquilo, é o exemplo do tipo de herói que a arte de nosso tempo não mais produz, e, mesmo sendo compreensível que nossa sociedade, sendo outra, produza, na arte, seus próprios tipos de heróis, é necessário a valorização do personagem esquiliano como referência de uma criação artística produto de uma sociedade com características específicas, e também como exemplo de uma arte que pode funcionar como elemento de transformação do ser humano em sua luta contra as adversidades, prevenindo-o contra a conformação com as mesmas.
A fidelidade de Prometeu aos seus princípios torna-se ainda mais óbvia quando se observa o próprio arranjo cênico da peça, na qual Ésquilo postou seu herói em uma posição de imutabilidade física extrema, imutabilidade física que é ao mesmo tempo confirmação e metáfora de sua atitude de não aceitação dos desígnios de Zeus e seus comandados, pois diante deles Prometeu permanece sempre constante em sua insubordinação. Esta característica de imutabilidade física, que Ésquilo deu a Prometeu, surge como objeto interessante à pesquisa, pois sendo o teatro um gênero que pressupõe ação, Aristóteles mesmo diz em sua Poética: “Ademais, sem ação não poderia haver tragédia;” um pouco antes, também no capítulo VI ele disse ainda: “É a tragédia a representação de uma ação grave, com atores agindo e não narrando” sendo assim como a construção esquiliana do personagem Prometeu se justifica?
É a tentativa de responder esta pergunta que moverá o meu interesse nesta pesquisa, que se centrará principalmente no arranjo cênico da peça. Em função disto investigarei de que formas o arranjo cênico peculiar criado por Ésquilo para sua obra Prometeu Acorrentado contribuiu para a configuração do personagem Prometeu.


CAPÍTULO I – PROMETEU ACORRENTADO E A TRAGÉDIA GREGA


A peça de Ésquilo, Prometeu Acorrentado, objeto deste estudo, é uma das mais conhecidas obras do teatro trágico grego, despertando interesse e discussão em diversas áreas de pesquisa tais como antropologia, sociologia e filologia.
Antes de iniciar o estudo de Prometeu, o personagem principal, é preciso conhecer melhor o gênero tragédia grega desde sua origem, passando pela compreensão da obra trágica de Ésquilo, até chegar a forma como o autor adaptou o mito de Prometeu à sua obra, na tentativa de desvendar as caracterizações elaboradas pelo autor na construção de Prometeu, na peça Prometeu Acorrentado.
Este primeiro capítulo será destinado a estas tarefas que serão muito importantes para um desenvolvimento mais claro e objetivo deste estudo.
Segundo Lesky (1995), as origens da tragédia, que remontam à época arcaica, configuram um dos problemas mais difíceis e discutidos da literatura grega. Sabe-se que naquele período as colônias gregas, tanto a leste como a oeste, viviam um momento de efervescência em diversos domínios. Ao contrário, a metrópole passava por um momento de estabilidade que possibilitou um apuramento, uma evolução da arte dramática em solo ático. Decorrida nesse momento histórico, a evolução está constatada em obras posteriores, o que nos testemunha o progresso e aperfeiçoamento do drama no período arcaico. Contudo, estas manifestações não chegaram até nós em forma de literatura e tampouco em forma de dados e informações sobre as obras dos escritores daquele período, alcançando-nos tão somente por meio de doxografia. Mas acima de tudo temos ainda as obras do século V a. C. que atestam a presença da elaboração no período arcaico.
Em sua História da Literatura Grega, Lesky (1995) coloca-se ao lado de Aristóteles, aceitando a Poética como fonte segura para conhecer a gênese da tragédia, em detrimento de representantes de uma tendência etnológica que rivalizam com as indicações de Aristóteles, considerando-as equivocadas. Os debatedores de Aristóteles tentam derivar a tragédia das danças e ritos mímicos de vegetação dos povos primitivos. Lesky por sua vez rebate esta idéia alegando que o material etnológico, apesar de também ter contribuído para o desenvolvimento do gênero trágico, é um dado comum a muitos outros povos que não desenvolveram a tragédia, vindo esta a florescer exatamente e exclusivamente em solo grego. Lesky (1995) argumenta ainda que é preciso considerar a posição privilegiada de Aristóteles na história, o fato do filósofo ter vivido, e construído sua obra em um período muito próximo ao do florescimento do tema que trata. Lesky (1995) ainda aponta um outro fator que legitima e dá credibilidade ao filósofo grego, o conhecimento de que Aristóteles fez, assim como para sua Política, estudos preliminares muito cuidadosos também, para a Poética.
De acordo com Lesky (1995) é no capítulo IV da Poética de Aristóteles que o filósofo grego dá a solução para a origem da tragédia, que segundo o filósofo surgiu dentro do ditirambo, do embate entre o coro e o corifeu, embate este que evoluiu para o desenvolvimento posterior do elemento dialógico e dramático. O ditirambo era o canto em honra ao deus Dionísio que, passando por processos de transformações em direção a uma forma artística, constituiu um elemento primordial da formação da tragédia. Mas mesmo em Aristóteles a origem da tragédia é um tema permeado de complicações. O autor da Poética, em sua própria obra aponta uma segunda origem para a tragédia grega. De acordo com Lesky (1995) o filósofo afirma que inicialmente a tragédia era formada de pequenos temas carregados de uma linguagem jocosa, que apenas mais tardiamente assumiu uma forma de absoluta dignidade, ao distanciar-se do satyrikon. Para compreender bem este processo é preciso ter em mente que o satyrikon tratado por Aristóteles na Poética não é aquele na forma de drama satírico aperfeiçoado, que se configurou da forma que o conhecemos só após o estabelecimento da tragédia. Durante o curso de seu desenvolvimento, a tragédia sofreu influência do elemento satírico, que também caminhava, absorvendo-o progressivamente, porém sem dar a este posição de destaque, mantendo-o em segundo plano.
Mas quando e de que forma se deu o encontro do ditirambo com o satírico para que ambos fossem considerados elementos originários da tragédia? A resposta a esta pergunta encontramo-la, segundo Lesky (1995) em Heródoto e na Suda, que apontam, segundo a tradição, Aríon como o primeiro a compor um ditirambo, dar-lhe nome e representá-lo em Corinto. Aríon também é apontado como o primeiro a ter composto um coro, a cantar um ditirambo e nomear a parte cantada pelo coro, além de ter introduzido sátiros falando em versos. Lesky pontua ser evidente que Aríon não foi o inventor do canto do culto à Dionísio, mas seu valor está no fato de ter dado ao ditirambo uma forma artística dentro da lírica coral e ter feito com que sátiros representassem estes ditirambos de forma artística. Assim estabelecida a maneira como os dois elementos, ditirambo e satírico, se uniram, formou-se a base segura para a afirmação da Poética sobre a dupla origem da tragédia.
Uma outra questão relacionada à gênese da tragédia é o fato de seu tema ser dissonante de seus elementos originários. Apesar de conter, vários elementos dionisíacos herdados do ditirambo e do satírico, o tema, invariavelmente trágico, suscitou já entre os antigos estudiosos uma frase proverbial: Isto nada tem a ver com Dionísio. A explicação que Lesky (1995) encontrou para esta questão é que, na época dos tiranos, o culto a Dionísio, o deus dos camponeses, foi extremamente incentivado por aqueles governantes. Ao lado disso, os governantes incentivaram homenagens aos heróis por meio da tragédia. Isso levou a lenda heróica a figurar como conteúdo do drama trágico. Os mitos dos heróis, após o período épico e da lírica coral, passaram a figurar na tragédia como base para a problemática ético-religiosa do gênero que, com este novo elemento, aproximou-se mais do povo, pois os mitos dos heróis eram parte de sua história. Entretanto, apesar da aproximação com o tema heróico, a tragédia pôde manter, relativamente ao objeto tratado, o distanciamento necessário a toda grande obra de arte.
Estabelecidas assim, a partir de Lesky (1995), as origens da tragédia, podemos avançar rumo a uma relação da tragédia com a obra que pretendemos estudar. O tema de Ésquilo, em Prometeu Acorrentado, resumido como a história de um herói, que, por desafiar um deus todo poderoso, é castigado, pode ser considerado como eco artístico da situação vivida pelos gregos, especialmente aqueles que eram adeptos do culto de Dionísio. De acordo dom Junito Brandão (1985), nos rituais desse deus ocorria um processo de embriagues de êxtase e entusiasmo a partir do qual o adepto tornava-se o homo dionysiacus, libertando-se neste estado dos interditos de ordem ética, política e social, ultrapassando desta forma o “métron”, que significa a medida de cada um. Nesta situação o homem comum torna-se o ATOR, um outro, além de, ao ultrapassar o métron comete uma démesure, uma hybris, uma violência cometida contra si e os deuses imortais, o que provoca a nemesis, o ciúme divino, o que acarreta posteriormente uma punição. De certa forma esta situação de desobediência à ordem divina era também uma desobediência ao estado. Não temos pretensão aqui de afirmar que o drama criado por Ésquilo em Prometeu Acorrentado seja um instrumento didático de fundo estatal ou religioso, no entanto fica claro que o tema da tragédia em questão correspondia a uma situação social do mundo grego.
Ésquilo, o mais antigo da tríade de trágicos completada por Sófocles e Eurípedes, é considerado o mais ritualístico entre os três famosos tragediógrafos gregos. A propósito disso Junito Brandão salienta que “o teatro esquiliano é muito mais uma teomorfização que uma antropomorfização.” Esta afirmação, se colocada, principalmente, sobre Prometeu Acorrentado, pode servir muito bem para ajudar na compreensão da obra trágica de Ésquilo.
Pensemos em um primeiro momento na questão da mímese, a imitação no drama do Titã parece criar uma situação de elevação do herói, que já sendo um ser divino, cresce ainda mais durante a trama em função de sua coragem, altruísmo e certeza da natureza benéfica de seu ato heróico em favor da humanidade, o que lhe acarreta martírios dolorosos, os quais ele enfrenta sem medo e com orgulho. Dessa forma, Prometeu, um ser de caráter divino diviniza-se ainda mais devido a heroicidade de seu ato e de seu comportamento imutável mesmo diante do pesado e duro castigo. A conduta de Prometeu, se considerarmos que o herói da tragédia seja um exemplo a ser seguido pelo espectador, assim parece, pode ter o mesmo efeito de elevação sobre a platéia, um efeito de identificação com o herói de caráter divino, daí a teomorfização do próprio espectador da obra de Ésquilo. Junito Brandão (1985) pontua também que os personagens esquilianos são mais heróis que homens, vivendo um drama de luta desesperada entre as trevas e a luz. Em Prometeu Acorrentado, esta equação de confronto entre luz e trevas travou-se no próprio herói, que preferiu, compadecido, roubar o fogo dos deuses Olímpicos para através dele legar aos seres humanos a luz divina que lhes animaria o gênio, o espírito e as artes, ao invés de abandoná-los à sorte que Zeus a eles destinara, de permanecerem nas trevas da ignorância.
Junito Brandão (1985), analisando outra peça de Ésquilo, Os Persas, aponta a Moira como filosofia básica do teatro esquiliano. A fatalidade cega castiga o homem, mas este também é responsável por seu destino, pois o atraiu para si quando ultrapassou o métron. É o que ocorreu com Xerxes em Os Persas, o rei Persa ultrapassou sua medida ao ambicionar derrotar o exercito grego, e a fatalidade que o esmagou foi a derrota completa de seu exército. O mesmo processo ocorre também em Prometeu Acorrentado, onde o herói Prometeu comete uma hybris ao roubar o fogo divino, ultrapassando seu métron mesmo já sabendo o castigo que Zeus iria lhe impor. Dessa forma, Prometeu também é esmagado pela moira, tendo também responsabilidade quanto ao seu destino, pois sendo o herói da peça conhecedor do futuro, já sabia o que lhe acarretaria a ultrapassagem de sua medida. Outra afirmação de Junito Brandão é a de que o teatro esquiliano é um drama sem esperanças e sem promessas, Junito afirma também que para Ésquilo do sofrimento advém sabedoria, pensando estas afirmações em relação à Prometeu Acorrentado podemos constatar isso, principalmente através do drama da personagem Io, a qual está condenada a sofrer um martírio duradouro, e é através do sofrimento de sua perseguição que Io faz compreender a tirania divina.
Outro estudioso, Vernant (1991), no segundo volume de seu livro, Mito e Tragédia na Grécia Antiga, aponta que no teatro esquiliano a intervenção entre o mundo divino e o mundo humano é constante. Os dois universos refletem-se constantemente em uma corrente na qual conflitos humanos correspondem aos conflitos divinos, onde a tragédia humana é também uma tragédia divina. No caso de Prometeu Acorrentado a analogia é simples se pensarmos em relações de poder político, onde o herói pode ser interpretado como representante do povo em seu ato de insubordinação contra o poder tirânico de Zeus. Um outro apontamento de Vernant (1991) em relação ao teatro esquiliano é a representação cênica de onde o drama trágico se desenrola. Segundo o autor, na tragédia deve existir um processo de reconhecimento e de questionamento da cidade por ela mesma, por isso é que a ação cênica é desenvolvida na maioria das vezes diante de um palácio real ou de um templo, mas em uma das exceções a essa regra inclui-se Prometeu Acorrentado, cuja cena desenvolve-se em uma montanha, um lugar ermo, longe da cidade, essa característica singular de Prometeu Acorrentado será objeto de análise, para fundamentar a idéia da imutabilidade física e ideológica, em um dos próximos capítulos deste trabalho.
Um outro tema de Prometeu Acorrentado abordado por Vernant (1991), é a situação do escravo dentro da obra de Ésquilo. O autor destaca que na peça referida o papel do escravo foi elaborado de forma muito enriquecida por Ésquilo, pois o autor colocou o Titã Prometeu, um ser divino, sendo castigado como um escravo por Zeus que nessa visão desempenha um papel de senhor e tirano. Há ainda o contraste entre a escravidão de Prometeu e a servidão voluntária a Zeus que o herói atribui a Hermes, considerando-a ainda mais repugnante que o sofrimento de seu castigo[1].
Em relação ao mito de Prometeu, Jean-Pierre Vernant (2002) atenta para a existência de mitos de dois Prometeus com algumas características distintas. O primeiro, deus das indústrias do fogo, ceramista e metalúrgico, o segundo, o Titã envolvido no tema dos conflitos entre as gerações divinas. Em Prometeu Acorrentado Ésquilo apresenta um herói que é a fusão desses dois, colocando em cena um Prometeu, portador do fogo tomado dos deuses e castigado, vítima da cólera de Zeus. Vernant (2002) mostra, comparando Prometeu com o Zeus presente em Hesíodo, uma imagem negativa do primeiro. A comparação evidencia um Zeus cuja inteligência é regida pela ordem e pela justiça enquanto a inteligência de Prometeu provém de cálculo e astúcia, caracterizando assim seus pensamentos como sendo fraudulentos e sua previdência muitas vezes causadora de enganos levando Prometeu a ser considerado, por vezes, imprudente e irrefletido. Poderíamos fazer essa mesma leitura de Prometeu na peça, contudo se o herói que Ésquilo apresentou talvez tenha sido imprevidente, ou inconseqüente, sua conduta é perdoável se colocarmos em vista seu objetivo de auxiliar os seres humanos, que somente nele encontraram amparo, caso típico em que os fins justificaram os meios. Vernant (1991), aponta ainda uma característica geral de Prometeu que aparece além de em Ésquilo, em Hesíodo e em Platão, a do encarregado de distribuir a cada um a sua parte. Platão mostra Prometeu junto com Epimeteu, seu irmão, encarregado de distribuir aos seres da criação “as qualidades de maneira conveniente”. Em Hesíodo ele é o árbitro da disputa entre os deuses e os homens, investido da tarefa de fixar a ração de cada um. Em Ésquilo, finalmente, Prometeu é o único a lembrar-se da raça humana, opondo-se aos planos de Zeus, quando este reparte os privilégios entre os deuses e demarca os níveis de seu império.
Nota-se que, segundo Vernant (1991), apenas em Ésquilo surge a preocupação de Prometeu com os seres humanos e, além disso, somente na construção do personagem trágico o herói do mito surge como contestador de uma ordem pré-estabelecida, enquanto que em Platão e Hesíodo ele simplesmente cumpre funções que lhe foram destinadas. O que se pôde observar é que, diante das diversidades relacionadas ao mito, Ésquilo optou por reforçar a imagem do herói divino, benfeitor da humanidade, que com seu altruísmo e orgulho frente aos injustos castigos eleva-se ainda mais diante da platéia, trazendo esta junto de si em sua elevação trágica por meio do processo de identificação que marca a arte dramática grega.
Mas além de estudar o mito, as formas e opções das quais se valeu Ésquilo na construção de sua obra, seria interessante também observar o contexto histórico-social no qual todos os elementos abordados, inclusive o autor estavam inseridos. Passemos ao próximo capítulo.
















CAPÍTULO II – ÉSQUILO E PROMETEU - POLÍTICA E MITOLOGIA GREGA

De acordo com Vernant (1991), no segundo volume de Mito e Tragédia na Grécia Antiga, Ésquilo foi contemporâneo às Guerras Médicas, tendo inclusive lutado nas batalhas de Maratona e Salamina. Tinha cerca de dezoito anos quando Clístenes operou as grandes reformas que posteriormente introduziram a democracia em Atenas. Foi contemporâneo também das disputas dos democratas, dentre os quais se destacaram Elfiates e Péricles, contra seus opositores.
Sabe-se que Elfiates enfraqueceu o Aerópago[2], tornando a Boulé[3], junto com a assembléia popular o único órgão com função política em Atenas, mas não se sabe como Ésquilo viveu esta importante mudança na pólis, tampouco sabe-se seu posicionamento e como ele votou na assembléia. Duas indicações exteriores à sua obra, apesar de não trazerem luz à questão, são importantes, mesmo apontando cada uma delas posicionamentos diferentes. A primeira diz respeito ao seu corego[4], que em 472 a. C. era Péricles, isso nos leva claramente a fixar para Ésquilo, nesta época, a posição de democrata. Por outro lado o epitáfio do dramaturgo omite toda sua obra literária, fazendo menção apenas a sua participação na batalha de Maratona em detrimento a de Salamina, o que o coloca, ideologicamente, ao lado da república dos hoplitas, opositora da democracia.
Sendo, por enquanto, insolúvel a questão do posicionamento político/ideológico de Ésquilo durante o advento da democracia em Atenas, voltemos então o olhar para o que diz Vernant (1991) sobre a tragédia neste período. Ainda no segundo volume de Mito e Tragédia na Grécia Antiga, o autor citado afirma que a tragédia é uma forma de identificação da cidade democrática. Ao opor o ator ao coro ela representa o mito do príncipe tornado tirano, questionando-o ao mostrar seus erros que finalmente o levam à catástrofe, a síntese da cegueira real. O povo, segundo Vernant (1991), não está presente no palco da tragédia, seu lugar é nos degraus do teatro. O coro, que poderia desempenhar o papel do povo, é em Ésquilo composto por Fúrias em Eumênides, escravas em Sete contra Tebas, Suplicantes e Coéforas, e em Prometeu Acorrentado pelas deusas oceânides. Em Ésquilo o povo é na verdade apenas representado por meio de figurantes mudos.
Essas informações históricas, se confrontadas com Prometeu Acorrentado parecem não ser de grande valia para relacionar de forma exata e segura a obra com a situação política vigente, visto que os personagens de Ésquilo na peça pertençam todos a categoria dos deuses olímpicos. Mas isso não exclui, absolutamente, a possibilidade do autor ter usado em sua obra analogias entre esses deuses e os governantes de sua época, principalmente porque a peça trata do poder tirânico, da injustiça e da insubordinação, elementos presentes nos embates políticos universais.
Dessa forma resta buscar os aspectos culturais presentes entre os gregos para situar a análise da obra o mais próximo possível do universo que lhe é próprio.
No capítulo anterior já foi abordada a questão relativa à duplicidade mitológica de Prometeu. Um dos mitos mostrava-o como deus das indústrias do fogo, o outro como o Titã envolvido nas disputas entre as gerações divinas. Foi mostrado também um aspecto mitológico comum - o de dar a cada um a sua parte - é essa a função de Prometeu em Hesíodo, Platão e Ésquilo. A partir disso percebemos que Ésquilo utilizou-se do macrocosmos mitológico grego para construir sua obra trágica, ora adaptando à sua necessidade artística dois mitos de certa forma distintos embora concernentes a um mesmo personagem, ora utilizando-se do mito de forma consensual à que os gregos já conheciam. As adaptações do mito criaram um microcosmos que é a própria peça Prometeu Acorrentado.
Kitto, outro estudioso da tragédia grega fala sobre as adaptações e apropriações feitas por Ésquilo para a construção de Prometeu Acorrentado. Em sua obra, A Tragédia Grega, (1972) ele diz que o mito em Hesíodo oferecia um deus menor, ardiloso, que simplesmente roubou o fogo para dá-lo aos mortais. Ésquilo por sua vez “transformou-o num deus que tinha dado ao homem tudo que o distinguia da criação bruta e lhe dava possibilidades de se medir com Zeus.” (Kitto 1972, p. 195) Mas adiante, na mesma obra, Kitto afirma, em relação a toda obra do dramaturgo grego, que Ésquilo foi capaz de criar seus próprios mitos para servir-se deles como desejava, fazendo com que eles comunicassem o que ele queria, evitando que suas peças seguissem histórias já existentes. As informações acima, acerca da época e da obra de Ésquilo, não são suficientes para caracterizar seu posicionamento durante as transformações que Atenas sofreu, tampouco são capazes de demonstrar, em suas obras, simpatia ou antipatia pelo advento da democracia, por outro lado elas atestam que Ésquilo foi um autor maior, que, por meio de sua arte, utilizando-se da mitologia, expressão cultural tão própria dos gregos, foi capaz de criar, em uma obra como Prometeu Acorrentado, um enredo universal, que traduz a eterna luta entre oprimidos e opressores, e um herói superior e exemplar, na medida em que toma para si a responsabilidade de proteger os mais fracos diante dos mais fortes ao custo de sua própria destruição.

CAPÍTULO III – PROMETEU – O HERÓI IMUTÁVEL

Prometeu Acorrentado - única peça remanescente de uma trilogia - trata do castigo do Titã Prometeu, herói da peça, que, por ter roubado o fogo dos deuses para dá-lo aos humanos, é condenado a ficar acorrentado a uma montanha, sob as intempéries da natureza, para expiar a culpa que Zeus e os deuses Olímpicos lhe atribuem, e ser coagido a revelar um segredo, de grande valia para Zeus, que apenas ele detém. Mas Prometeu não se julga culpado, antes sente-se injustiçado pelo senhor dos deuses, e é por meio deste conflito entre o Titã e Zeus que se dará a ação dramática da peça. Renata Pallottini, em seu livro Dramaturgia, Construção do Personagem (1989, p. 11) diz que “ação dramática é o movimento interno da peça de teatro, um evoluir constante de acontecimentos, de vontade, de sentimentos e emoções, movimento e evolução que caminham para um fim, um alvo, uma meta”. Mas a ação dramática em Prometeu Acorrentado não corresponde inteiramente à definição de Pallottini, pois na peça em questão a relação entre a evolução de acontecimentos e o movimento são nulos. Esta afirmação, extraída a partir da análise da peça, na qual o herói permanece durante toda a cena, acorrentado, é compartilhada por Kitto (1972, p. 111), segundo ele, Ésquilo dramatiza efetivamente, em Prometeu Acorrentado, as emoções e não os acontecimentos. Temos portanto um conceito de ação dramática que pressupõe, entre outros elementos, evolução de acontecimentos e movimento para a evolução de uma peça, por outro lado temos uma peça onde a evolução de acontecimentos e o movimento são nulos, e é neste ponto de divergência, entre o conceito de evolução dramática e a ausência, em Prometeu Acorrentado, de dois de seus elementos necessários, que surge o problema a ser analisado neste trabalho.
Imutabilidade. Esta é a característica principal de Prometeu na peça, e é por meio da presente análise que mostraremos duas faces dela, a física, a ideológica, e a forma como Ésquilo fortaleceu a segunda a partir da primeira, simultaneamente, na construção do personagem. E a melhor forma para isso, já que se trata de um texto dramático, é proceder a análise, principalmente, a partir dos diálogos, das falas de cada personagem que interage com Prometeu, levando-se muito em conta a opinião de Kitto (1972), quando ele diz que toda a atenção da peça gira à volta de Prometeu, e que tudo acontece em função do herói, Kitto (1972, p. 109) afirma: “Olhamos sempre a partir das personagens menores para o herói”. Este é um dado importante e será a pista que guiará a análise. Outro dado importante é ter a noção clara do que é um personagem dramático, vejamos o que Pallottini(1989, p. 13) diz a respeito:

...o personagem, esse contorno de ser humano feito por um criador, mais ou menos preenchido de detalhes, imitador de uma pessoa, que está destinado a cumprir um papel na peça de teatro, dizendo, fazendo, agindo, mostrando-se por gestos, atitudes, entonações, levando adiante a ação dramática que é a essência da obra teatral.

Juntamente com a análise da interação de Prometeu com os personagens menores estaremos atentos ao personagem do herói, aos detalhes com os quais Ésquilo o proveu, ao seu destino dentro da peça, seus gestos, atitudes e a forma como é conduzida, por meio dele, a ação dramática da peça.
Mas antes dos diálogos dos personagens menores com o herói há o silêncio de Prometeu, segundo Pallottini o silêncio sempre diz algo, e este algo caracteriza o personagem em seu momento dramático na peça. Vejamos: a cena do agrilhoamento estabelece, logo no início, a imutabilidade física de Prometeu, que perdurará durante toda a peça, este recurso de Ésquilo é muito importante e significativo para a caracterização do herói, que, além de permanecer estático fisicamente, permanecerá estático também ideologicamente, defendendo sempre, diante das pressões de Zeus, seu orgulho e dignidade. Começar a peça a partir deste episódio imprimiu uma grande força dramática à obra pois, segundo Pallottini (1989, p. 72), “o que se vê tem muito mais impacto do que simplesmente se ouve, o que é feito no palco, em geral, não se perde; o que é dito sim, muitas vezes.” Em cena o herói é agrilhoado por Hefestos sob as ordens implacáveis de Poder, o diálogo entre os dois últimos é importante, pois acentua a expressividade do silêncio de Prometeu. Kitto, (1972) aponta que Ésquilo se aproveitou otimamente do terceiro ator nesta cena, pois dessa forma, através do terceiro ator foi possível representar a cena do agrilhoamento preservando o “efeito dramático do silêncio desdenhoso de Prometeu”, que tinha o espírito voltado para Zeus e não se rebaixaria ao ponto de conversar com seus carrascos. Kitto (1972) afirma ainda que diante do silêncio de Prometeu seria forçoso que um outro ator falasse, mas um monólogo não teria o mesmo valor dramático de um diálogo neste momento, onde o diálogo calhou bem melhor, possibilitado pela presença do terceiro ator. O autor mostra que Ésquilo poderia, ao invés do terceiro ator ter feito entrar em cena o coro, porém pondera que isso sacrificaria o efeito dramático da solidão extrema do lugar.
O herói em silêncio diante de seus carrascos mostra ao espectador seu orgulho resistência e dignidade, e assim desde a primeira cena demonstra sua obstinação em manter-se senhor de si e de sua grandeza que o impossibilita pedir clemência ou mostrar-se arrependido. O agrilhoamento de Prometeu em um lugar ermo e distante, no alto de uma montanha contribui tanto para acentuar o caráter de seu castigo quanto para enfatizar sua natureza singular, diferenciando-o, pois Prometeu não é um criminoso qualquer a quem se poderia depositar, em meio a outros, em um cárcere qualquer. A altura da montanha em que Prometeu está preso conclama a altura do próprio Prometeu.
Um outro efeito dramático criado por Ésquilo nesta primeira cena surge do contraponto entre a truculência de Poder e a comiseração de Hefestos. Este último poderia guardar mais ódio de Prometeu que qualquer outro, pois como Poder diz a Hefestos em sua primeira fala:

O Poder - ... Ele roubou o fogo – teu atributo...

Mas assim não é. Por quê? Se Poder e Hefestos se posicionassem da mesma forma, condenando Prometeu indiscutivelmente, o herói surgiria ao espectador como culpado, e justo seria o duro castigo que lhe é imposto. Mas a compaixão de Hefestos serve para mostrar a injustiça da condenação.


Hefestos - Ai de ti, Prometeu! Como me penaliza tua desgraça!

Além disso é Hefestos, logo em sua primeira fala, quem anuncia a Prometeu a sua hybris:

Hefestos - Eis a conseqüência de tua dedicação pelos humanos; como deus, que tu és, fizeste aos mortais uma dádiva tal, que ultrapassou todas as prerrogativas possíveis.

Fosse Poder que o fizesse soaria de uma forma ainda mais condenatória.
Após a saída de Poder e Hefestos, sozinho, Prometeu proclama seu sofrimento. Desvairado indaga em monólogo quando será o fim de seu castigo, mas logo percebe o paradoxo que suas palavras lhe impõem:

Prometeu - Mas... que digo eu? O futuro não tem segredos para mim; nenhuma desgraça imprevista me pode acontecer.

É que, segundo Kitto, o drama da peça ocorre principalmente dentro do próprio Prometeu e seu sofrimento o confunde em relação a si mesmo, mas o herói se recobra logo, o que não contribui para melhorar sua situação, mais adiante ele diz:

Prometeu - Não me posso calar, nem protestar contra a sorte que me esmaga!

Ao fim de seu monólogo Prometeu ouve o coro que chega voando, contraste excelente para acentuar a imobilidade do herói. As ninfas oceânides, classificadas por Kitto como “donzelas do mar semi-imaginárias” contrastam, segundo ele, com Prometeu, “a rocha agrilhoada a uma rocha” (Kitto, pág. 116). É por meio da comiseração do coro em relação a Prometeu que Ésquilo extrai mais e mais indignação deste contra Zeus, efeito que certamente recaí sobre a platéia, pois segundo Patrice Pavis (1999), em seu Dicionário de Teatro, o coro é o espectador idealizado e para que o espectador real se reconheça no coro é preciso que ele compartilhe os valores transmitidos. Sabendo que a identificação é base para a realização do teatro grego é de se supor que a platéia de Ésquilo compartilhou com o coro a comiseração por Prometeu.
O coro, se forem divididos os personagens em dois blocos, se agrupará ao lado dos que defendem Prometeu. Por meio de seu diálogo pode-se reforçar a tese da imutabilidade ideológica e física do herói. Em sua primeira fala o coro reforça o contraste de seu movimento em relação a imobilidade de Prometeu:

O Coro - Nada Temas! É um bando amigo que, trazido pelas asas ligeiras, veio ter a este rochedo...

Prometeu por sua vez as saúda aludindo a Oceano, pai delas:

Prometeu - ... Oceano, cujas águas circundam a terra, com suas ondas em perenal movimento.

E a característica dada ao deus contrapõe-se a sua situação:

Prometeu - ...acorrentado a este íngreme rochedo, onde ficarei de sentinela, bem a meu pesar, pelos tempos a fora!

E é falando ao coro que Prometeu revela sua obstinação na resistência contra a vontade de Zeus, sua imutabilidade ideológica:

Prometeu - Mas em vão há de empregar as mais terríveis ameaças; não lhe revelarei tal segredo enquanto não houver rompido estas correntes e consentido em reparar minha injúria.

E as ninfas do coro reconhecem, admiradas, a irredutibilidade de Prometeu:

O Coro - Sempre a mesma altivez! Tu não cedes, Prometeu, mesmo no cúmulo da desgraça!

Após as oceânides Ésquilo coloca em cena Oceano, o foco sobre a imutabilidade que já se movera, da física para a ideológica, com o coro vai agora se firmar sobre este último, pois Oceano toma desde logo a posição de conselheiro:

O Oceano - ...convém que tomes, pois, outros sentimentos...

Antes disso, na sua primeira fala a Prometeu, Oceano declara-se amigo do Titã, mas não é na verdade um amigo incondicional, que apóia todas as suas ações, antes disso apresenta-se como amigo judicioso, que quer trazê-lo de volta à razão, à obediência a Zeus. É este posicionamento de Oceano que vai evidenciar ainda mais a irredutibilidade de Prometeu, a sua decisão de não curvar-se o mínimo sequer diante da vontade de Zeus. Oceano, preocupado com o agravamento dos castigos que o orgulho de Prometeu pode acarretar, exorta-o:

O Oceano – Abafa, ó infeliz, tua cólera impotente; procura alcançar o perdão... Talvez este conselho te pareça de um velho; mas tu sabes que males pode atrair um discurso insolente. Nada te pode humilhar, nada te pode abater... mas tu procuras redobrar teu sofrimento. Crê-me; curva-te sob o jugo: pensa que, atualmente, reina um senhor severo e supremo!

Mas Prometeu não cederá. Apesar de surpreso com a severidade de seu castigo, surpresa que ele mesmo evidenciou na mesma fala em que relatou sua hybris ao coro:

Prometeu – Eu havia previsto tudo... Eu quis cometer o meu crime! Eu o quis, conscientemente, não o nego! Para acudir aos mortais, causei minha própria perdição, mas nunca supus que me veria assim consumido sobre estes rochedos, no cume deserto de montanha inabitável.

Mesmo diante da crueldade de seu injusto castigo o herói mantém-se inabalável, e apesar do aceno de perdão que Oceano lhe assegura conseguir Prometeu permanece firme.

Prometeu – Abandona esses inúteis cuidados; tu não me farás ceder.

Além de seu posicionamento irredutível Prometeu revela, em suas falas, sua nobreza. Vítima de severo castigo ainda se mostra capaz de zelar pela segurança de Oceano, aconselhando-o:

Prometeu – Cuidado! Não te cause esta visita alguma desgraça!...

Oceano, mesmo censurando, reconhece a grandeza de Prometeu:

O Oceano – Sabes aconselhar aos outros bem melhor do que a ti mesmo... Disso estás dando prova...

Prometeu completa, dando mais mostras de sua magnanimidade:

Prometeu – Trata de procurar repouso e abrigo. Se eu sou desgraçado, não quero arrastar comigo a quem quer que seja, ao abismo da desgraça.

O Titã quer sempre preservar seu orgulho, que reflete sua impassibilidade, diante de Zeus, por isso não consente de forma alguma que Oceano interceda por ele junto ao senhor do Olimpo:

Prometeu – Tua sabedoria, Oceano, prescinde de meus conselhos... Deixa-me suportar minha sorte, até que a cólera de Zeus se abrande.

O Oceano – ignoras por acaso, ó Prometeu, que um discurso pode minorar a mais terrível cólera?

Prometeu – Sim, quando se espera o momento oportuno; não se choca violentamente um espírito irritado.

O Oceano – Que perigo vês tu, em que eu deseje e o tente conseguir?

Prometeu – Será esforço inútil, loucura e simplicidade.

O Oceano – Consinto em sofrer desses males... O sábio que se faz de ingênuo, muitas vezes realiza melhor seus propósitos.

Prometeu – Mas essa falsa tentativa me será atribuída.

Por fim o conselheiro Oceano, vendo baldado seus esforços, vai-se embora acatando os conselhos de Prometeu. Contraste interessante que reforça ainda mais força de vontade do herói. Após a saída de Oceano, cuja presença marcou fortemente a irredutibilidade ideológica de Prometeu, o coro volta a falar, e falando a Prometeu fazem, com suas palavras, novo contraste em relação a imobilidade física de Prometeu:

O Coro – Ó Prometeu! Como deploramos teu infeliz destino! De nossos olhos comovidos correm rios de lágrimas...

Prometeu não pode e não quer se mover, mas a sua atitude somada a sua situação, contraditoriamente, produz o movimento no choro das oceânides. E a volta do foco sobre a imutabilidade física de Prometeu se acentuará de forma ainda mais aguda coma entrada em cena de Io. Logo ao entrar em cena, em sua primeira fala, Io indaga e exclama o tempo todo revelando um agitação extrema de espírito contrastando com a serenidade de Prometeu, que neste ponto da peça já se mostrou tranqüilo e seguro, principalmente em seu orgulho de ser o benfeitor da humanidade:

Prometeu – Em suma: todas as artes e conhecimentos que os homens possuem são devidos a Prometeu.

Sua serenidade é confirmada ainda mais em sua próxima fala, mesmo após ter sido engrandecido pelo coro que o quis frontear a Zeus, Prometeu não se entregou a vaidade:

Prometeu – Não!... Não foi assim que dispôs o destino inexorável. Só depois de haver sofrido penas e torturas infinitas é que sairei desta férrea prisão. A inteligência nada pode contra a fatalidade.

A presença de Io em cena é a contraposição mais aguda à imobilidade de Prometeu. A descrição da jovem, na fala de Prometeu em resposta ao coro, comprova:

Prometeu – Sim... ouço a voz da infeliz a quem persegue um inseto cruel: é a filha de Ínaco, por que Zeus está apaixonado, e a quem Juno, ciumenta, obriga a fugir, sem repousa, numa corrida louca, por este mundo afora.

Mas é por causa de Io, no momento em que a ação dramática estabelece a mais aguda contraposição, maximizando a imobilidade da prisão de Prometeu diante da “carreira sem descanso” de Io, que ocorre uma ruptura na imutabilidade ideológica de Prometeu. Io interroga Prometeu acerca do crime do Titã, que se nega a responder, Io tenta saber então sobre qual será o fim de sua carreira dolorosa, mas Prometeu não está disposto a revelar-lhe nada:

Prometeu – Bem melhor será que o ignores, do que conhecê-lo.

Mas Io insiste:

Io – Oh! Não me ocultes coisa alguma do que me resta sofrer!

É bem verdade que esta recusa de Prometeu não está ligada aquela posição firme de não se dobrar à vontade de Zeus, mas é uma característica do Titã. Característica da qual ele abre mão apenas para Io, de quem ele se compadece, com quem ele se identifica. Afinal ambos não são injustiçados pelos deuses? Uma condenada a vagar sem descanso, o outro condenado a ficar para sempre preso a uma rocha. Mas é cedendo à vontade de Io que Prometeu torna a mostrar sua generosidade, mostrava já generosidade em sua recusa querendo poupar a jovem Io de seus sofrimentos vindouros, contudo mostra generosidade também ao atender ao pedido de quem, como ele, tanto sofre:

Prometeu – Visto que tanto empenho mostras, penso que devo satisfazer teu desejo.

É que ambos, Io e Prometeu, com suas condenações discrepantes sofrem de forma igual, Prometeu sabe bem disso, e após a intervenção do coro declara:

Prometeu – É sempre um conforto revelar nossas dores àqueles que nos ouvem condoídos, e nos comovem com suas lágrimas.

E é imbuído desse mesmo espírito de benevolência e generosidade que Prometeu cederá novamente, agora ao desejo do coro de conhecer o nome de seu libertador e ao de Io, de saber o restante de seus sofrimentos. O herói havia anunciado, a Io, resoluto:

Prometeu – Escolhe, pois: ou sabes o que te resta sofrer ainda, ou o nome de meu libertador.

Porém, coma intervenção do coro capitula:

Prometeu – Vós assim exigis, e eu nada vos posso negar!

Então Prometeu passa a contar todas as desventuras futuras de Io e ao fim de sua predição se dispõe a esclarecer todas as dúvidas da jovem, faz isso aludindo a sua situação de imobilidade após a narração da peregrinação incessante de Io:

Prometeu – Faze tuas perguntas, porque posso tudo esclarecer, para isso, bem contra minha vontade, tenho tempo de sobra.

No mais, Ésquilo, além de contrapor fortemente, à narração das peregrinações de Io, à situação desta com a de Prometeu, certamente para acentuar a úlitma, utilizou a presença da jovem em cena para que o espectador vislumbrasse o segredo que Prometeu possui como única arma contra Zeus. Indagado a respeito da natureza, divina ou mortal, da esposa com a qual Zeus gerará o filho que haveria de lhe tomar o trono, Prometeu responde:

Prometeu – Que te importa saber? A tal respeito guardarei segredo.

E é deste segredo, guardado por Prometeu, que Hermes vem em busca. Ele é o último personagem a entrar em cena, e em sua presença é novamente deslocado o foco da imutabilidade de Prometeu, que se voltará mais uma vez para a face ideológica do herói, e é diante de Hermes que ela se mostrará mais acentuada do que nunca. Hermes é o emissário e filho de Zeus, ele vem renovando as ameaças e prometendo castigos ainda mais terríveis ao herói e pretende arrancar do Titã o segredo do futuro de seu império que Zeus tanto deseja. Mais uma vez, porém, Prometeu não cederá. Após ser insultado por Hermes, que em nome de Zeus exige a revelação do segredo Prometeu responde:

Prometeu – Pensas porventura que me acovarde, e que me submeta a esses novos deuses? Longe disto estou, Hermes! Podes ir-te embora! Volta sem tardança ao lugar de onde vieste: nada mais saberás por mim.

É diante de Hermes, representante direto de Zeus, que Prometeu revela todo seu orgulho e irredutibilidade diante de toda injustiça e tirania. E o próprio Hermes é obrigado, logo de início, a reconhecer a obstinação do herói:

Hermes – Eis o invencível orgulho que tantas desgraças já te causou!

Hermes então muda de tática, tenta obter algo espezinhando e ironizando Prometeu e seu sofrimento. Ao ser afrontado pelo herói que lhe diz preferir o sofrimento por que passa em lugar de sua escravidão a Zeus Hermes responde:

Hermes – Sem dúvida, estás, presentemente, numa situação deliciosa!

E quando o herói Prometeu diz odiar o deuses todos, a quem ajudou, e de quem recebe apenas ingratidão e injustiça Hermes responde:

Hermes – Tens a razão conturbada, bem se vê; o mal é violento...

Prometeu revolta-se, e na sua revolta revela mais uma vez sua impassibilidade:

Prometeu – Enganas-te! E a prova é que nada te revelarei, vil escravo!

Hermes então apela ainda, e sua pergunta soa como uma súplica:

Hermes – Nada dirás, então, do que meu pai te ordena?

É agora a vez de Prometeu ironizar de deixar Hermes desconcertado:

Prometeu – Devo-lhe tantos benefícios, que, como vês, tenho obrigação de retribuir!...

Hermes – Prometeu, tu zombas de mim, e tratas-me como a uma criança!

Na resposta do herói Prometeu é reforçada sua obstinação e revelado o elo de ligação entre sua imutabilidade física e ideológica:

Prometeu – Por acaso não é uma infantilidade o pretenderes arrancar de mim uma revelação? Não há tormentos nem artifícios que me forcem a elucidar esse mistério a Zeus enquanto não forem rompidas as correntes que me prendem!

Indagado a respeito de sua obstinação o herói reforça:

Prometeu – Tudo já está por mim previsto: há muito tempo que esta minha resolução está tomada!

Mas Hermes insiste, e mais uma vez anuncia o aumento do castigo, das penas de Prometeu exortando-o a abrir mão de sua irredutibilidade que ele denomina teimosia, no entanto quem se pronúncia é o coro. Este que durante toda peça esteve ao lado do herói, agora acha razoáveis as exigências de Hermes e lhe aconselha uma capitulação:

O Coro – Hermes quer que abandones esse orgulho e adotes uma decisão sensata, ó Prometeu. O que ele diz, afigura-se-nos razoável... Crê! Para o sábio é uma vergonha perseverar no erro cometido.

Prometeu, no entanto mantém-se firme. Sua capacidade de saber o futuro já lhe dera o conhecimento de tudo o que viria a sofrer, assim ele anuncia já saber de seu destino. Anuncia também que haja o que houver; cataclismos terríveis ou tempestades violentas, ele permanecerá firme. Imutável.

Prometeu – Eu já sabia tudo, tudo, o que ele acaba de me anunciar!... Faça ele o que fizer!... eu hei de viver!

É que Ésquilo construiu o personagem Prometeu para resistir a toda tirania, castigos e injustiças divinas, e ao final da peça o herói não poderia se trair. Manteve-se como se portou por toda a obra, irredutível diante de todos e principalmente diante de si mesmo.































CAPÍTULO IV – CONSIDERAÇÕES FINAIS

Segundo Pallottini, (1989) o autor, ao criar um personagem o faz dando-lhe características que lhe serão necessárias para a sua “existência”. Prometeu era um personagem fiel apenas a si mesmo e arredio diante dos outros personagens, e foi usando exatamente os outros personagens que Ésquilo caracterizou o herói, fazendo-o interagir com eles, falando e ouvindo, influenciando e sendo influenciado. Porque no teatro, o diálogo entre os personagens é o que dá vida a peça, e nessa troca a caracterização do personagem principal se deu principalmente por meio do contraste com os seus interlocutores, que se viam, ora admirados com a irredutibilidade de Prometeu, ora impotentes de demovê-lo de sua posição ideológica de não se submeter à vontade de Zeus.
Como bem disse Junito Brandão, (1985, p. 19) “em Ésquilo as personagens existem em função da fábula”. Então se o tragediógrafo grego quis encenar o drama de Prometeu e escolheu colocá-lo em cena acorrentado era mister que suas caracterizações e os diálogos em torno dele ressaltassem sua situação dramática. Os exemplos apontados no capítulo anterior atestam que além de estar, Prometeu, agrilhoado a rocha de uma alta montanha, situação que era constantemente ressaltada a partir dos contrastes característicos ou dialógicos introduzidos pelos outros personagens, estava também preso, fiel a sua própria ideologia de insubordinação a Zeus, posição que se anunciou por toda a peça por meio das falas do herói e pelas falas de seus interlocutores.
Vimos então que a ação da peça não se desenvolve a partir de acontecimentos, mas ocorre, segundo Kitto (1972), em um movimento de intensificação dramática que se verifica dentro do espírito do herói Prometeu, é que, ainda segundo Kitto, Ésquilo dramatizou em Prometeu Acorrentado as emoções, e não os acontecimentos, onde a situação do herói é a maior representação da peça, não no que ele faz, mas no que ele sente e no que ele é. As revelações tomam lugar da ação e do movimento, e são as revelações dos personagens, a narração do drama de Io, a comiseração do coro e de Hefestos, a truculência de Poder, a possibilidade de perdão que Oceano oferece ao herói e o anúncio de Hermes, diante da última prova de insubordinação do herói, do agravamento da penas de Prometeu, que fundamentam e caracterizam a tensão crescente de uma situação que não se move durante toda a peça.




REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


BRANDÃO, Junito de Souza. Teatro grego: tragédia e comédia. São Paulo: Vozes, 1985.
COSTA, Lígia Militz da. A poética de Aristóteles: mímese e verossimilhança. São Paulo: Ática, 1992
KITTO, H. D. F. A tragédia grega. Coimbra: Armênio Armado Editor, 1972.
LESKY, Albin. História da literatura grega. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1995.
PALLOTTINI, Renata. Dramaturgia: a construção do personagem. São Paulo: Ática 1989.
PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro. São Paulo: Perspectiva, 1999.
VERNANT, Jean-Pierre. Mito e pensamento entre os gregos. Rio de Janeiro: Paz e Terra 2002.
VERNANT, Jean-Pierre. Mito e tragédia na Grécia antiga. São Paulo, Brasiliense, 1991.

[1] Jean-Pierre Vernant em Mito e Tragédia na Grécia Antiga, 1991, p. 120 afirma que na obra de Ésquilo existem dois tipos de escravos: por destinação e por captura.
[2] Conselho de membros da aristocracia Ateniense.
[3] Assembléia de cidadãos encarregados de deliberar sobre assuntos da cidade.
[4] Cidadão responsável pelas apresentações teatrais em Atenas.

A REESTRUTURAÇÃO CAPITALISTA A PARTIR DA DÉCADA DE 80 E SUAS INFLUÊNCIAS NA PRÁTICA SOCIAL

A partir da década de 80 a classe trabalhadora sentiu um golpe significativo que redesenhou seu perfil. Uma gigantesca implantação de inovações tecnológicas possibilitou às fábricas uma diminuição considerável nos números de seus quadros de operários. Sofreram mais com tal mudança aqueles operários, homens e mulheres, cuja pouca capacitação os habilitava apenas ao desempenho de trabalhos braçais, trabalhos este que doravante seria atribuído às máquinas. Além disso, nos anos 80 a indústria mundial retraiu-se não mais repetindo aquele crescimento que a caracterizara nas décadas anteriores. Somando-se estes fatores tivemos como conseqüência imediata o desemprego e frente a isso a instabilidade profissional daqueles que apesar de tudo conseguiram manter seus postos de trabalho, postos estes que agora era almejado por um número cada vez maior de pretendentes.
Esta divisão da classe trabalhadora entre empregados e desempregados minou a histórica unidade que ela possuía, e mesmo no meio daqueles trabalhadores que conseguiram permanecer em seus postos surgiu uma classe privilegiada nos postos de chefia que marcava uma diferença até econômica em relação aos trabalhadores dos cargos subalternos. Estes dois fatores provocaram um enfraquecimento do sindicalismo e subseqüentemente a diminuição da representação política das classes trabalhadoras.
Outra característica da década de 80 foi que com a indústria de massa barateando os preços de bens de consumo a classe trabalhadora pode pela primeira vez adquirir produtos que até então não estava acostumada a possuir como, por exemplo, o automóvel. Perante esta aparente ascensão social os trabalhadores que faziam parte daquela porção que ainda mantinha seus empregos e começava a participar de forma mais ativa no mercado de consumo não estava mais interessada em lutas sociais de caráter esquerdista temendo a perda das vantagens que começavam a adquirir, e havia entre estes os que se tornavam militantes de políticas de direita.


A EDUCAÇÃO ATUAL FRENTE ÀS MUDANÇAS NO PROCESSO HISTÓRICO DO TRABALHO



A partir do momento em que a educação passou a ser estendida até as classes pobres da população ela adquiriu um caráter extremamente prático que visa à inclusão no mercado de trabalho. Ora, se o trabalho sofre transformações significativas desencadeadas pelo processo histórico é de se esperar que a educação acompanhe tais mudanças.
Nos anos anteriores aos tempos atuais à educação, nos últimos anos do ensino médio, estava preocupada com a preparação do aluno para o iminente ingresso no mercado de trabalho, sua preocupação era formar um cidadão que, fora da escola fosse de imediato capaz de desempenhar uma profissão a que fora programado. Para isso os estabelecimentos de ensino de cada região elegiam a habilitação profissional a ser ministrada de acordo com as necessidades do mercado de trabalho local.
Mas nos dias de hoje tais métodos não são capazes, menos ainda do que eram anteriormente, de garantir ao aluno lugar no mercado de trabalho. O fenômeno da globalização exige dos trabalhadores capacidade constante de readaptação, pois a estabilidade profissional é cada vez menor, e as empresas não querem de maneira alguma perder tempo com funcionários que demorem a se adaptar ao seu sistema de trabalho. Diante desta realidade a educação está obrigada a formar futuros profissionais adaptáveis e flexíveis aos humores do mercado de trabalho, que sejam capazes de aperfeiçoamentos posteriores.
A situação descrita acima aponta para um problema que a educação deve se esforçar para superar, pois como sabemos a escola não é uma simples fábrica, cujas linhas de produção devem industrializar jovens na forma de trabalhadores. É claro que o crescimento econômico depende da existência de profissionais qualificados, mas não é só disso que o mundo precisa - o conhecimento intelectual deve acompanhar o conhecimento técnico para a completa compreensão de todas as relações humanas servindo como chave para que cada indivíduo entenda que a convivência social não pode ser reduzida a relações comerciais e demandas sempre crescente de produção e consumo.